quinta-feira, 25 de março de 2010
Sem historinha, mas com sentido
por Beth Néspoli
Seção: Festival de Curitiba/Só uma opinião
24.março.2010
“Não gostei do espetáculo não, não tem história.” Esta é uma cobrança que ainda se ouve muito na saída dos espetáculos. Mais do que nunca, aqui no Festival de Curitiba, onde quase 400 peças estão em cartaz, muitas delas são criadas na linha que se costuma rotular de “experimental”. Nada contra a fábula, a narrativa no teatro. Se encenada com inteligência, dos gregos a Shakespeare, tem intenso poder mobilizador. E pode ser muito, muito mais significativa do que um “experimento” em que fragmentos não passam disso, pedaços que nem com muita boa vontade o público pode unir em uma construção com um mínimo de sentido. Mas a narrativa de uma fábula ou situação não é a única forma de se construir uma poética cênica. O público das exposições de artes plásticas já transita por instalações com certa fluência, usufruindo das sensações provocadas, construindo sentidos. No teatro, ainda há muita resistência a uma estética equivalente.
Vida, espetáculo da curitibana Cia. Brasileira de Teatro, dirigida por Marcio Abreu, é uma dessas montagens em cartaz na mostra oficial que, de certa forma, coloca em cena uma instalação. O simples fato de fazerem parte de uma banda que ensaia um “número” para uma apresentação cívica justifica a reunião das quatro figuras trazidas ao palco pelos atores Giovana Soar, Nadja Naira, Ranieri Gonzalez e Rodrigo Ferrarini. É possível falar de vida e morte a partir de um encontro assim. E de várias maneiras. Nada é óbvio na expressão cênica que surge a partir daí. Questões prosaicas, pequenos dramas cotidianos e contradições humanas e universais – como o embate entre o desejo de ser livre e o de estar seguro – vêm à tona numa formalização muito elaborada, cheia de humor e surpreendente. Com dramaturgia criada em sala de ensaio pelos atores e com texto final do diretor, o espetáculo não se funda, como esse mote faz parecer, na facilidade da discussão entre amigos, conversa de bar. Os atores quase não dialogam. As conversas se voltam para o espectador, cuja presença é assumida. Contribui para a qualidade do que se faz e diz a matéria-prima com a qual trabalham: a poesia de Leminski, Maiakovski, Beckett, Haroldo de Campos, entre outros grandes autores – devidamente deglutidos. Com uma caneta a laser, Rodrigo Ferrarini ilumina um ponto num mapa do Planeta e compartilha com o público uma reflexão sobre o fato de alguém escrever algo num ponto obscuro do Planeta e essa ‘obra’ interessar pessoas que vivem muito longe no espaço e no tempo. Vida tem diferentes andamentos para tratar de variações sobre esse tema, a arte como esse ponto de luz que atrai a atenção e interessa ser visto. Que liga os humanos como construtores de uma cultura e os diferencia dos animais.
Em uma segunda camada, o grupo traz para a cena inquietações que são de ordem estética. Em uma delas, Ranieri é empurrado para o palco com um figurino feminino. “Vestiram essas roupas em mim e pediram para fazer alguma coisa”, diz ele, não exatamente com estas palavras. Ele canta com postura de Diva e Giovana Soar, em um ataque meio histérico de fã, diz: “Eu queria ser você, ver o mundo através de você, a partir de sua visão”. Pode-se “ler” aí uma “problematização” do personagem dramático que pede a interpretação na qual o ator “encarna” o outro. O diálogo como canal de comunicação também é posto em questão, na estrutura da peça, e na cena inicial, na qual o ator Rodrigo Ferrarini fala com o público. Mas é apenas uma possibilidade de leitura nesse espetáculo que alcança polifonia.
Quando realizada em sala de ensaio por atores e um diretor talentoso, como é o caso da Cia. Brasileira, a dramaturgia torna-se significativa e se harmoniza com a escrita cênica. Mas o excesso costuma ser o calcanhar de Aquiles do processo colaborativo. Vida estreou no Festival de Curitiba e talvez alguns cortes ampliassem sentidos pelo efeito de concentração, em vez de reduzi-los. Operação sempre difícil de ser feita por envolver afetos, apegos, sobretudo quando todas as cenas estão bem-elaboradas. No teatro, porém, menos costuma mesmo resultar em mais.
Seção: Festival de Curitiba/Só uma opinião
24.março.2010
“Não gostei do espetáculo não, não tem história.” Esta é uma cobrança que ainda se ouve muito na saída dos espetáculos. Mais do que nunca, aqui no Festival de Curitiba, onde quase 400 peças estão em cartaz, muitas delas são criadas na linha que se costuma rotular de “experimental”. Nada contra a fábula, a narrativa no teatro. Se encenada com inteligência, dos gregos a Shakespeare, tem intenso poder mobilizador. E pode ser muito, muito mais significativa do que um “experimento” em que fragmentos não passam disso, pedaços que nem com muita boa vontade o público pode unir em uma construção com um mínimo de sentido. Mas a narrativa de uma fábula ou situação não é a única forma de se construir uma poética cênica. O público das exposições de artes plásticas já transita por instalações com certa fluência, usufruindo das sensações provocadas, construindo sentidos. No teatro, ainda há muita resistência a uma estética equivalente.
Vida, espetáculo da curitibana Cia. Brasileira de Teatro, dirigida por Marcio Abreu, é uma dessas montagens em cartaz na mostra oficial que, de certa forma, coloca em cena uma instalação. O simples fato de fazerem parte de uma banda que ensaia um “número” para uma apresentação cívica justifica a reunião das quatro figuras trazidas ao palco pelos atores Giovana Soar, Nadja Naira, Ranieri Gonzalez e Rodrigo Ferrarini. É possível falar de vida e morte a partir de um encontro assim. E de várias maneiras. Nada é óbvio na expressão cênica que surge a partir daí. Questões prosaicas, pequenos dramas cotidianos e contradições humanas e universais – como o embate entre o desejo de ser livre e o de estar seguro – vêm à tona numa formalização muito elaborada, cheia de humor e surpreendente. Com dramaturgia criada em sala de ensaio pelos atores e com texto final do diretor, o espetáculo não se funda, como esse mote faz parecer, na facilidade da discussão entre amigos, conversa de bar. Os atores quase não dialogam. As conversas se voltam para o espectador, cuja presença é assumida. Contribui para a qualidade do que se faz e diz a matéria-prima com a qual trabalham: a poesia de Leminski, Maiakovski, Beckett, Haroldo de Campos, entre outros grandes autores – devidamente deglutidos. Com uma caneta a laser, Rodrigo Ferrarini ilumina um ponto num mapa do Planeta e compartilha com o público uma reflexão sobre o fato de alguém escrever algo num ponto obscuro do Planeta e essa ‘obra’ interessar pessoas que vivem muito longe no espaço e no tempo. Vida tem diferentes andamentos para tratar de variações sobre esse tema, a arte como esse ponto de luz que atrai a atenção e interessa ser visto. Que liga os humanos como construtores de uma cultura e os diferencia dos animais.
Em uma segunda camada, o grupo traz para a cena inquietações que são de ordem estética. Em uma delas, Ranieri é empurrado para o palco com um figurino feminino. “Vestiram essas roupas em mim e pediram para fazer alguma coisa”, diz ele, não exatamente com estas palavras. Ele canta com postura de Diva e Giovana Soar, em um ataque meio histérico de fã, diz: “Eu queria ser você, ver o mundo através de você, a partir de sua visão”. Pode-se “ler” aí uma “problematização” do personagem dramático que pede a interpretação na qual o ator “encarna” o outro. O diálogo como canal de comunicação também é posto em questão, na estrutura da peça, e na cena inicial, na qual o ator Rodrigo Ferrarini fala com o público. Mas é apenas uma possibilidade de leitura nesse espetáculo que alcança polifonia.
Quando realizada em sala de ensaio por atores e um diretor talentoso, como é o caso da Cia. Brasileira, a dramaturgia torna-se significativa e se harmoniza com a escrita cênica. Mas o excesso costuma ser o calcanhar de Aquiles do processo colaborativo. Vida estreou no Festival de Curitiba e talvez alguns cortes ampliassem sentidos pelo efeito de concentração, em vez de reduzi-los. Operação sempre difícil de ser feita por envolver afetos, apegos, sobretudo quando todas as cenas estão bem-elaboradas. No teatro, porém, menos costuma mesmo resultar em mais.
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