quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

agenda 2012



VIDA começa o ano em Brasília...Teatro da CAIXA...

dias 9, 10, 11 e 12 de fevereiro

APAREÇAM!!!!

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

VIDA CONQUISTA PREMIO BRAVO!

GAZETA DO POVO 27 outubro 2010 por Luciana Romagnolli
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Foi um grande feito para o teatro paranaense: a Companhia Brasileira de Teatro, dirigida por Marcio Abreu, conquistou na ultima segunda-feira o 6.° Premio Bravo! Bradesco Prime de Cultura, na categoria melhor espetaculo de 2010, por Vida. A montagem estreou em março, no Festival de Curitiba, após dois anos de pesquisas sobre o universo criativo de Paulo Leminski. Ao lado do Shell, o Bravo! Bradesco Prime é o prêmio mais importante do setor. Vida passou por outros festivais, como o Filo, em Londrina e o FIT Belo Horizonte, com ótima recepção de público e crítica.
Na semana passada, voltou a capital mineira para participar do Acto 2!, ao lado dos grupos Espanca! e XIX de Teatro. Nos próximos meses, o elenco formado por Nadja Naira, Giovana Soar, Ranieri Gonzalez e Rodrigo Ferrarini vai apresentá-la no FIAC (em Salvador) e fará nova temporada em São Paulo.
A Companhia Brasileira também ja trabalha numa nova produção, a estrear em Curitiba em dezembro. Batizada de Oxigênio, tem texto do dramaturgo russo Ivan Viripaev, contemporâneo e inédito no país.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Latir ou não latir, eis a questão

por Luiz Merten  blogs ESTADÃO SP

26.julho.2010

Teria de retroceder no tempo. Quais as peças que me marcaram nos últimos tempos? O ‘Calígula’ de Gabriel Villela, o ‘Policarpo Quaresma’ de Antunes Filho. E agora o ‘Vida’ da Companhia Brasileira de Teatro, nome talvez pomposo para o coletivo de Márcio Abreu, de Curitiba. Fui ver a peça ontem no Sesc Santana. É uma colagem de textos de Paulo Leminski, mas não só dele, porque existem referências e citações de Maiakovski, Haroldo de Campos, Beckett, James joyce, Mishima, Petrônio e Cruz e Sousa, o poeta simbolista biografado por Sylvio Back num belo filme subestimado (como quase toda a obra de Sylvio). Talvez tivesse dificuldade para resumir, se vocês me perguntassem sobre o que ‘versa’ a peça. É sobre tudo, e nada em particular. Digamos que é sobre a linguagem, já que começa como uma discussão sobre as palavras. O que eu digo aqui te interessa, leitor? Como dizer algo a alguém? Como despertar o interesse? O texto e o espetáculo são sobre isso. O título amplo é a melhor definição. É sobre a vida. E a vida o que é, diga lá, meu irmão? Ah, Gonzaguinha… Havia uma criança na plateia, uma menina. Ela falava com a mãe. Vi que muita gente estava incomodada, mas a menina era uma gracinha e acrescentava ao texto. Numa cena, o ator Ranieri González desaparece de cena e volta vestido de mulher. A maneira como ele volta, de repente, como se atirado dentro da cena, pega a gente de surpresa. A menina sentenciou – ‘Ele não é mulher’. Era impossível deixar de rir. Acho que o próprio Ranieri gostaria de ter rido. Achei tudo tão lúdico, inteligente. As duas horas me caíram leves, sem peso algum,e eu saí com 1001 ideias, 1001 interrogações. Em outra cena, Ranieri canta de forma lancinante, exprimindo dor sem que uma só palavra seja inteligível de seus improvisos. Não pude deixar de pensar em Gabriel Villela. Para me provocar – e provar a superioridade do teatro sobre o cinema –, Gabriel vive ameaçando tirar a máquina da tomada e acabar com o filme. Uma parte significativa da peça passa-se às escuras, à luz de um fósforo – meu reino por uma vela! -, mas também existem filmes que entram no buraco negro. O documentário de Lírio Ferreira sobre Cartola, por exemplo. É ótimo quando a gente vê coisas que nos estimulam, seja teatro. cinema, show ou o quê. Fiquei pensando que título dar a este post. Há uma faixa no palco. Diz ‘Distraídos, venceremos’. Achei muito bacana, mas há um monólogo sobre a solidão dos cães que uivam à noite. E, quando um late – au, au -, todos os cães se unem numa sinfonia que vara a madrugada. Shakespearianamente, em ‘Vida’, latir ou não latir é a questão.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Nome, dança, espaço, alteridade, autoria

http://www.questaodecritica.com.br/
Autor: Daniele Avila

Crítica das peças Otro, do Coletivo Improviso, e Vida, da Companhia Brasileira de Teatro


Vida. Foto: Bruno Tetto

Procuro aqui puxar e ligar alguns fios. Dois espetáculos fizeram curtas temporadas no Rio de Janeiro nesse mês de maio: Otro or weknowitsallornothing, do Coletivo Improviso, do Rio, e Vida, da Companhia Brasileira de Teatro, de Curitiba. Otro estreou aqui com jeito de pré-estreia, fez três semanas na programação do Projeto Entre, no Espaço Cultural Sérgio Porto e segue para outros países. Vida, depois de estrear no Festival de Curitiba e cumprir temporada por lá, fez seis apresentações no Espaço Tom Jobim.

Por algum motivo, estes dois trabalhos, bem diferentes em diversos aspectos, parecem lidar – cada um a seu modo – com uma espécie de universo estético comum, e parecem exemplares (na falta de uma expressão melhor) de uma certa forma de pensar e fazer teatro que se destaca da maior parte dos espetáculos em cartaz atualmente no Rio. Talvez a suposição de uma aproximação entre as duas peças não se sustente, mas vale a tentativa. Os fios que aqui procuro puxar e ligar seriam apontamentos sobre as possíveis questões estéticas deste universo comum aos dois espetáculos.

Vale ressaltar que não pretendo fazer nenhum tipo de comparação que envolva julgamentos de valor, mas observar aproximações e diferenças em pontos comuns. Estes pontos são problemas, no bom sentido. São elementos que provocam uma tensão interna no espetáculo e na relação com o espectador.

Nome

Nas duas peças, os atores estão em cena com seus próprios nomes, com depoimentos que são (declaradamente no caso de Otro) ou podem ser (o que é problematizado em Vida) deles mesmos. Em Vida, os atores não parecem estar em cena como são no cotidiano, mas também não estão fazendo personagens. Há uma construção precisa na fala, nos corpos, no ritmo, mas é uma construção de si ou a partir de si. Em Otro, os atores também não fazem personagens, mas dão a ver seu trabalho de atuação, expõem o processo de pesquisa, apresentam relatos da sua vida real. Em ambos os casos, existe uma relação de transparência na presença dos atores como artistas criadores.

Eles são como tradutores de si mesmos. Não acho que seja o caso de forçar a categoria performance em nenhum dos dois casos. Acho que há uma tendência, ainda hoje, em chamar de performance, happening, instalação, qualquer coisa que não se encaixe no drama. Acredito que esses dois trabalhos conseguem fugir das categorias prontas. E talvez seja possível dizer que eles põem em deriva as categorias pre-existentes de trabalho de ator. Eles não fazem personagens, mas também não fazem performance. Não digo, aqui, que estão inaugurando uma forma nova de fazer, apenas aponto que constituem um exemplo de uma certa tendência de experimentação no trabalho de ator, que também pode se verificar, por exemplo, no trabalho da Cia Vértice de Teatro.

No caso de Vida, parece que há uma espécie de consolidação, uma maturidade mais evidente na lida com o que se pode chamar de dramaturgia contemporânea, que já era clara em montagens anteriores do grupo, mas que aqui vai um pouco mais longe. Em Otro, a pessoalidade, a quase identidade entre a pessoa real do ator e a instância que ali se apresenta não dá tanto a ver o trabalho do ator no momento presente, mas insere a cena numa sequência temporal anterior ao espetáculo. A identidade, neste caso, parece menos um problema do fazer e mais um problema do criar.

Dança

A dança tem um papel importante em ambos os espetáculos, embora esteja articulada de maneira diferente na dramaturgia de cada um. Em Otro, a dança está imbricada na cena, na concepção mesma do espetáculo, está no corpo de alguns atores e na forma como se deslocam. Há diferentes momentos em que a dança é cena. A dança é forma, forma desse teatro, da pesquisa desse grupo. Mas há um momento em que todos fazem uma coreografia. É um ponto de descontração, que tem um certo humor, talvez por conta da visível pouca habilidade de um ou de outro, mas também por se tratar de uma coreografia simples, meio boba, que não demanda uma virtuosidade, ou ainda por que envolve objetos aleatórios, de dimensões muito diferentes, retirados do cenário naquele ponto. O humor dessa coreografia talvez esteja numa certa referência aos musicais – não os musicais do teatro, mas os musicais do cinema.



Vida. Foto: Luana Navarro

Em Vida, a dança parece entrar a princípio como tema. Um dos atores, Ranieri Gonzalez, conta que sempre quis dançar, mas que seu corpo não é próprio para a dança. Então ele relata uma apresentação de dança de velhinhos, com movimentos simples. Ele começa a fazer e narrar os movimentos, acompanhado por Nadja Naira e Rodrigo Ferrarini. Aos poucos, aquela “demonstração” se transforma em dança. Em poucos segundos, o espectador é surpreendido pela sofisticação dos movimentos e pela combinação de força e delicadeza de Nadja e Ranieri, numa cena que funciona como uma epifania do espetáculo. A dança aqui é conteúdo, por assim dizer, que num piscar de olhos vira forma. Vemos ali que aqueles atores podiam dançar o quanto quisessem. Depois, é possível perceber que eles, de certa formam, dançam a peça toda. Há ritmo e precisão durante todo o espetáculo, e a duração dos diálogos, das falas monológicas e dos silêncios é muito determinante para a produção de sentidos. Arrisco dizer que a dramaturgia de Vida é texto dançado. Contribui para essa consciência de ritmo, andamento e duração, a trilha de André Abujamra, que ganha evidência pela presença de Gustavo Proença, músico que acompanha o espetáculo logo abaixo do palco, à direita, fazendo algumas intervenções ao vivo.

Espaço

Em ambos os espetáculos, o cenário se coloca como uma espécie de espaço livre para a criação e a experimentação. Em Vida, a cena se dá numa sala de ensaio. A cenografia de Fernando Marés cria as paredes de uma sala de ensaio, com algumas cadeiras e uma mesa de madeira. Os atores estão ali como integrantes de uma banda que ensaiam para tocar numa festa da cidade. A parede do fundo é móvel e joga com as dimensões da sala, com as relações de distância e proximidade. Não se trata de um espaço que localiza a ação no tempo e no espaço ou num ambiente reconhecível para o espectador. Por mais que o cenário apresente uma sala de ensaio, ele acaba criando um espaço vazio, uma potencialidade.

O cenário de Aurora dos Campos, em Otro, não representa nenhum lugar específico, embora ofereça alguns rastros de lugares reais. A cenografia cria um espaço que também se configura a partir de sua virtualidade: um espaço livre, um pouco abstrato. As cadeiras e os pisos (recortes de linóleo que mimetizam pisos) funcionam como elementos básicos de lugares possíveis, recursos mínimos para instituir novas cenas ou para demarcar áreas do espaço cênico. Esses e outros elementos de cena atuam como pontos de partida ou novos começos, mantendo sempre o espaço aberto para o que vai acontecer em seguida.

Essa concepção de espaço que aparece nos dois trabalhos realiza uma operação importante na relação com o espectador: um convite a uma espécie de não-expectativa, a uma disponibilidade criativa, necessária para a fruição do espetáculo.

Alteridade

O outro é o ponto de partida de Otro, como se pode deduzir. Mas tem um papel importante em Vida. Talvez seja possível pensar que a alteridade é uma questão pertinente ao teatro, de um modo geral, tendo em vista a presença de corpos no espaço cuja não-identidade é imediatamente visível. Mas a alteridade em Otro é mais como um tema, enquanto em Vida, é uma condição de possibilidade das relações.

A pesquisa do Coletivo Improviso, pelo menos no que diz respeito ao que foi selecionado para o espetáculo, envolveu deslocamentos dos atores na cidade do Rio de Janeiro. Esse deslocamento, que partiu da Zona Sul da cidade para a Zona Oeste e outras áreas, prioriza um deslocamento do ator para o ambiente de outras classes sociais. O outro é observado como um objeto de estudo, como personagem cuja história de vida ou momento de contato com um dos atores/pesquisadores se transforma em narrativa. A relação com a alteridade é quase de curiosidade. Os relatos se dão como uma tentativa de trazer a realidade para dentro da cena em quadros narrativos. As projeções em vídeo de Felipe Ribeiro e a trilha sonora de Lucas Marcier criam um clima que estetiza esses recortes do real. O outro é apresentado, desenhado; o experimento com o outro é como uma hipótese sobre uma amostra da natureza – sempre mediada pelo olhar do pesquisador, o ator. Nesse jogo, é justamente esse olhar que fica em evidência: tendo a alteridade como ponto de partida, é a identidade de cada um que se revela nas formas de relatar.

Essa questão é trabalhada de outra maneira pela Cia. Brasileira. O outro é o outro que está mais próximo – o outro ator que está ali do lado todos os dias – ou ainda o outro de si. O Rodrigo que está em cena não é exatamente o ator Rodrigo Ferrarini, mas um outro que também é ele. Identidade e alteridade estão misturadas, problematizadas. Uma das cenas do espetáculo mostra o ator Ranieri Gonzalez falando sobre as suas tatuagens. O espectador pode desconfiar se o que ele está dizendo é real, se aquele “texto” é do próprio ator ou se aquele Ranieri que está ali é uma construção – mesmo diante das tatuagens, que estão lá e que não parecem falsas. Muitos pedaços de diálogos se dão como um embate abstrato entre aquelas pessoas, como se a simples presença num espaço comum trouxesse à superfície a condição de alteridade. O deslocamento é mútuo. Os outros se encontram: a alteridade é experiência, mais que experimentação. Assim aparece, em Vida, o outro no que está mais perto e o outro de cada um. A alteridade é como uma identidade em deriva.



Autoria

É característica das duas obras a relação co-criativa entre encenação e dramaturgia e uma tendência à horizontalidade na autoria. Vale observar a distribuição da ficha técnica de cada trabalho. Em Vida, Marcio Abreu assina texto e direção, mas divide a dramaturgia com as outras integrantes do grupo, Nadja Naira e Giovana Soar , atrizes do espetáculo. Existe então uma noção de dramaturgia que é diferente do texto, cuja feitura está imbricada na atividade da direção. Em Otro, a dramaturgia fica a cargo de Enrique Diaz e Cristina Moura, que assinam a direção, sendo que ambos estão em cena e também assinam criação junto com o restante do elenco: Daniela Fortes, Denise Stutz, Felipe Rocha, Raquel Rocha, Renato Linhares e Thierry Tremoroux. A dramaturgia ainda conta com a colaboração de Alex Cassal. Temos então as instâncias direção, dramaturgia e criação espalhadas entre os integrantes do processo, além da presença de mais de vinte pessoas que participaram de residências e conferências. Enrique Diaz assina o projeto. É interessante notar na ficha técnica de Otro essa ênfase no caráter processual, de pesquisa, na criação. Em Vida, é o grupo, a Companhia Brasileira de Teatro, quem assina criação e realização. Da mesma forma que vemos uma horizontalidade com relação à autoria, vemos artistas responsáveis pela realização de seus projetos.

A relação com as referências também é parecida. No espetáculo da Cia Brasileira, Paulo Leminski é a primeira referência, embora diversos artistas (de teatro, literatura, poesia, dança e cinema) façam parte do universo autoral da pesquisa: Pina Bausch, Emir Kusturica, Samuel Beckett, James Joyce e outros autores, como os dramaturgos franceses que integram o currículo de montagens do grupo: Jean-Luc Lagarce e Philippe Minyana. Em Otro, as referências estão mais nos procedimentos e exercícios do que em autores, embora apareçam nomes como Clarice Lispector e Sophie Calle. Mas, mesmo a relação de Vida com Leminski, que é mais declarada, não é uma relação de citação. É uma relação subjetiva, de apropriação e maturação, difícil de se nomear.

***

Outras questões poderiam ser observadas e os dois trabalhos merecem análises mais detalhadas que essa tateante aproximação. Mas ficamos por aqui. É importante pensar por que estes dois espetáculos ficaram tão pouco tempo no Rio. Que lugar tem esse tipo de pesquisa no “circuito” de teatro do Rio? Os espaços em que estes espetáculos ficaram em cartaz mostram intenção de pautar trabalhos mais autorais. O Projeto Entre inicia a ocupação do Sérgio Porto com uma proposta de curadoria e gestão, com uma programação de teatro, dança, artes visuais e atividades de discussão teórica. O Espaço Tom Jobim já assumiu outros projetos mais arriscados no que diz respeito à aceitação e interesse do público, como a programação internacional no segundo semestre de 2008 (mas, por outro lado, o espaço também tenta emplacar sucessos insípidos).

De qualquer modo, estes espetáculos, que parecem ter um potencial de chamar um público para o teatro carioca que não aprecia tanto as formas mais tradicionais de teatro, apenas passam por aqui, a título de exceção, e são vistos pelos artistas e estudantes de teatro. O público maior, que só vai assistir o que está mais visível, mais à mão, fica de fora, não tem nem oportunidade de ver. Se essa observação faz sentido, é um sinal de que os teatros do Rio e os mecanismos de incentivo às artes cênicas na cidade carecem de um pensamento sobre a programação de teatro da cidade, sobre a diversidade de opções que podem ser oferecidas aos espectadores. O público de teatro do Rio (que existe, que está aí) acaba bombardeado por uma série de espetáculos marcados por uma completa ausência de questionamento das formas de fazer e pensar o teatro, alguns são até reproduções de espetáculos criados por outras pessoas. Nesse sentido, seria iteressante se espetáculos como Otro e Vida ficassem mais tempo em cartaz na cidade. Eles poderiam ter uma boa relação com um público maior.

Informações sobre futuras temporadas no site do Coletivo Improviso e da Cia Brasileira de Teatro.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Haicai performático

Valmir Santos
http://www.teatrojornal.com.br/

O encontro das artes cênicas com a literatura é atávico, linguagens que se beijam não é de hoje. Em ano até aqui marcado por significativa incidência de escritores cuja vida ou obra são evocadas em cena (Ana Cristina César, Clarice Lispector, Lima Barreto, Fernando Pessoa, Machado de Assis, Patativa do Assaré, Dostoiévski, García Márquez, etc.), um dos desafios dos criadores do teatro é convencer o espectador a deslocar-se do papel de leitor, deixar-se levar por outras veredas e expectativas que não aquelas desbravadas nas páginas de seu autor dileto. Sentir como a poesia, a prosa, o ensaísmo e a tradução podem ampliar distintos horizontes da arte ao vivo.


Vida é justo um exemplo. Não há Paulo Leminski e há todo o Paulo Leminski em Vida, a visita da Companhia Brasileira de Teatro, de Curitiba, ao universo do conterrâneo mais varrido das letras paranaenses, para espanto e deleite da cidade – agora é que são eles – e do Brasil.
Assim como a palavra não constitui signo absoluto na escrita do autor de Catatau – ela é sempre entranhada a outras pontes imaginárias, mesmo quando no osso -, o texto do diretor Marcio Abreu e a dramaturgia que assina com as atrizes Giovana Soar e Nadja Naira encerram desvios para alcançar o seu próprio objeto de desejo. Apropriam-se da liberdade de linguagem que caracterizou a existência e a produção literária desse artista para construir uma galáxia particular no palco.
O espírito é libertário, primo do literário. Lançando mão da fábula e da fantasia, Vida ergue-se sem dependência biográfica, sem a promissória estilística do poeta. A Companhia Brasileira de Teatro afirma ter investido mais de ano e meio em pesquisa de campo, bibliografia, experimentos. O espetáculo pode ser lido como um haicai performático em suas estruturas e conteúdos livres e inerentes à cena contemporânea. Descama expectativas dramáticas padrões para incorporar à narrativa procedimentos sintéticos mais evidentes da performance, das artes visuais e da música. E sem jamais ostentá-los. Um projeto afinado à trajetória de quem o move – o luminescente Leminski - e radica o ato criador à condição sem a qual não se respira.

A variante exposta linhas atrás entre texto e dramaturgia sugere um primeiro indício de estranhamento. Abreu assina o que plasma de si mesmo na lida com os escritos do poeta ou os coteja em citações transversais (Maiakóvski, Haroldo de Campos, Beckett, Mishima, Pina Bausch, Chagal, Cristo, Bashô e Cruz e Sousa, entre outros – os três últimos biografados por Leminski). Já as duas atrizes do núcleo juntam-se a ele para dispor o verbo no palco, uma dramaturgia inscrita também no desenho espacial, nos objetos, no trançado do elenco com eles.

O tempo é indefinido. O lugar, sem portas, sem janelas. Quatro figuras mal esboçadas no início aos poucos dão liga ao fluxo e ao território percebidos pelo espectador. Nada é elementar. Há duas mulheres (Giovana e Nadja) e dois homens (Ranieri Gonzalez e Rodrigo Ferrarini). Eles atendem pelo nome dos atores. Encontram-se naqueles dias para ensaiar. Tocam e cantam na banda escalada para se apresentar no clube social em plena festa de jubileu da cidade. A apreensão precipita inseguranças individuais e coletivas para além dessas quatro paredes de cores desbotadas – sendo a quarta a da platéia, derrubada desde o primeiro segundo: o narrador/Ferrarini surge no corredor da sala e caminha em direção ao espaço cênico. Tem-se a medida do desaguar desse quarteto desde si.

A genealogia da peça acolhe breves excertos biográficos dos artistas envolvidos. Desenha-se em cena a curva entre a tela em branco dessas figuras, no início, e a evolução para outros pontos de fuga, as constituições do drama humano sem retoques: desejos, inseguranças, frustrações, felicidades, medos, desamores, prazeres, virtudes, amoralidades, e por aí vão. Distraída, a noite vence com fortes sentimentos tragicômicos. Emoções que nos acompanham após a sessão e dão o que falar e pensar sobre o cotidiano lá fora, a qualidade das relações interpessoais ou em comunidade.

O narrador conduz e é conduzido no passeio pela incongruência das coisas, das pessoas, dos acontecimentos lembrados, vividos ou projetados. Acompanhamos uma expedição pelo aqui com apoio do mapa-múndi pênsil na parede de fundo. Uma parede inteiriça, como as demais, do pé ao teto. Uma parede móvel com uma portinhola quase clandestina. Essa parede é móvel e molda o campo de visão em vários momentos. Não demora, o impacto monumental da cenografia de Fernando Marés logo se revela um mecanismo funcional e afins com a despojamento da proposta coadunada ao desenho de não-luz de Naira. O espetáculo descarta o efeito espetacular.

Leminski escreveu: “A interrogação é o próprio fundamento do diálogo, o reconhecimento da diferença entre o eu, que eu sou, e o eu que o outro é, separados e próximos pela prática da linguagem, hiato e ponte”
Foto: Elenize DezgeniskiHá cadeiras de madeira, uma mesa, um ventilador, um microfone, instrumentos musicais (bumbo, trompete, guitarra, pratos metálicos e voz), enfim, um essencialismo dissimulado para uma viagem tão complexa como envolvente no seu reparte de quatro histórias justapostas. Daí o bordão do narrador preocupado em divagar pelas ideias sem perder o chão de estrelas: "Alguém escapou?", pontua, com seu jeito didático que seduz o público por reflexões sagazes.

A arte da música é capítulo à parte, está na razão de ser da banda e nos lembra com quantos descompassos é feita a presumida harmonia. Sampleia a diversidade sonora que ao cabo é ainda a da língua, a da diversidade sexual, a da pluralidade ideológica e a de todas as variações para o tema que não quer calar: como viver junto? Essa dimensão é capturada pela versatilidade dos atores; pela contracenação na boca de cena com o músico Gustavo Proença (sopros, teclados e percussão); pela trilha composta originalmente por André Abujamra, que flerta com o acaso e soa mais incidental que programado, tudo a ver com o ritmo da encenação; e ainda pela direção vocal do texto por Babaya, a preparadora que equaliza a partitura de cada criador em busca de outros pulsares.

Um dos méritos de Vida é conceber essa cartografia cênica, poética e musical sem abrir mão da capacidade de afetar seu interlocutor, de emocionar com suas metáforas em pencas. É um trabalho de apurada base científica formal e linguística, à altura da sofisticação intelectual de Paulo Leminski. E, como ele, não enverga a armadura do saber ensimesmado. Preza o poder de comunicar-se e persegue a dimensão popular da palavra sem barateá-la.

Em abril, no último fim de semana da temporada de estreia, no Teatro José Maria Santos, a Companhia Brasileira de Teatro lotou as sessões atraindo um público que, em sua maioria, encontrava-a pela primeira vez com os artistas desse grupo que já conta uma década. Boa parte desses espectadores não conheceu as criações anteriores com textos de Julio Cortázar, Philippe Minyana, Jean-Luc Lagarce, etc. A gente de Curitiba não fugiu da raia leminskiana e viu-se um pouco representada ali, bem como a cidade que transparece humana em seus humores. Como numa das passagens a respeito de uma cidade onde "as pessoas fazem cara de nada", nas ruas ou nos elevadores, "como se a cidade estivesse vazia".


Como se.
Vida é uma criação ousada, inventiva. Joga limpo, ligeiro, um instalar de dedos. Entre as cenas memoráveis, uma das mais difíceis - para quem faz e para quem vê – é quando mergulhamos no breu por cerca de dez minutos. Tudo permanece como está, inclusive o ir e vir no tablado, os diálogos sobre tentar acender um fósforo para minimizar o baque no clima de uma festa de aniversário. Sob tensão dos dois lados, no palco e fora dele, a teatralidade é sustentada, mais do que nunca, pela instância da escuta. A escuta tão cara nos dias de hoje e aliada fundamental da palavra. Eis a revolucionária imaginação no poder, faceira e flagrante feito um poema de Leminski.
(12 de maio de 2010)

Uma tentativa de diálogo

Questão de Crítica - Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais
http://www.questaodecritica.com.br/
Autor: Luciana Eastwood Romagnoli

A Companhia Brasileira de Teatro saiu do processo de dois anos dedicados à literatura de Paulo Leminski tendo gestado uma obra autônoma: Vida. Os temas do poeta paranaense sobrevivem no espetáculo que estreou no Festival de Curitiba na medida em que vão diretamente de encontro aos interesses do grupo, muito identificado à dramaturgia francesa de um teatro em que a palavra germina em contextos frágeis de conversação.

Entre os escritos do poeta brasileiro, foram as sutilezas no trato com a linguagem e um universo impregnado por uma identidade curitibana ainda pouco problematizada artisticamente, os aspectos que mais contaminaram a companhia dirigida por Márcio Abreu. Coincidindo com a mudança do grupo do Rio de Janeiro para uma sede no centro histórico de Curitiba, a presença na cidade emergiu como um dos fios da textura dramatúrgica; outro são as estratégias que permitem o estabelecimento de um diálogo entre dois indivíduos. Juntam-se em uma observação crítica da existência nesse microcosmo, ao mesmo tempo em que Vida tangencia uma visão mais ampla, ainda que inevitavelmente vaga, do que significa estar no mundo.

O palco se apresenta, então, como lugar de encontros: sobretudo, de uma tentativa de diálogo. Mesmo que nem sempre a conexão entre os indivíduos se estabeleça e, nesses casos, sirva ao menos como ambiente privilegiado da expressão do eu. A própria maneira como Nadja (Naira) entra em cena pode ser lida como uma observação sobre a vida: espontânea e aleatória, confronta seres que não necessariamente têm pressupostos comuns a compartilhar, mas, uma vez postos em convívio, precisam instaurar algum modo de comunicação.

A princípio, nada une os quatro personagens que se encontram tão-somente para ensaiar um número musical. Guardam dos seus intérpretes os nomes e características pessoais, enfraquecidos por isso enquanto personagens ficcionais, mas, em contrapartida, fortalecidos pela biografia dos corpos e das personalidades daqueles indivíduos únicos que os representam. Nadja, Ranieri (Gonzalez), Giovana (Soar) e Rodrigo (Ferrarini) são enclausurados na sala de ensaios, isolados do mundo para que sobre eles recaia a atenção capaz de distinguir as manifestações particulares de cada personalidade, suas transformações à mercê do tempo e do contato com o outro.

A relação com o ambiente está no centro da concepção do espetáculo. Insinua-se quando o público é rememorado do instante e do espaço presentes, tanto pelo discurso direto quanto pelo uso radical da ausência de iluminação. O cenário se configura como um salão em que a única porta existente está escamoteada e é preciso atirar-se contra a parede para rompê-la. Um espaço cênico que (literalmente) se amplia e reduz, como a visão de mundo de quem está dentro ou fora de um contexto: é a deixa para que observações ácidas sobre hábitos locais desvelem a identidade curitibana, que permanece pouco consciente do seu interior, mas se torna mais delineável a partir de um ponto de vista externo. Faz-se a crítica, paradoxalmente, elaborando um sentimento de pertencimento.

Em oposição a esse microcosmo, também a dimensão da vida como fato cósmico é posta em questão. Frente à impossibilidade de se apreender e dizer a grandeza essencial, porém, a dramaturgia deixa que as trivialidades do cotidiano se desenrolem, para que de seus vãos escape algum entusiasmo, forjando momentos breves de elevação.

Nesse sentido, a fala de Ranieri, mais de uma vez dispersada, se impõe sintomática: “Eu estava pensando nos quinze minutos da minha vida que fizeram diferença no resto da minha vida.” Seus quinze minutos cruciais, quando chegam, constituem o auge emocional e energético do espetáculo. Ao microfone, transformado, Ranieri extravasa sua voz potente como pura energia sonora, em vez de veículo de um discurso: comunica uma vibração emocional e uma sensação mais grave de estar no mundo ao abolir as palavras. O momento finito de elevação vem para sugerir que a vida é feita de emoções e da falta delas. Outro pico, mais baixo, se dá no monólogo catártico de Giovana, quando o temperamento controlador cede à necessidade de conforto, num rompante de comoção.

Alimentada por lascas biográficas, a montagem toma o rumo de um desejo de realidade sem tentar forjar uma ilusão mimética. Vai por vezes em direção a um registro coloquial, sendo o máximo dessa aproximação a cena em que Giovana apresenta diretamente ao público as tatuagens de Ranieri. Nesse momento, a encenação abre-se para o naturalismo, confundindo limites entre personagens e atuadores, dentro das possibilidades restritas do trato documental numa situação roteirizada e repetida de palco. São, afinal, mais do que atores ou personagens, sujeitos que se expressam no mundo.

Pela fala esses indivíduos se constituem, a fala é ação: cria as zonas de interação onde brotam identificações e rancores. A palavra os consola da inação, como já o fizera Tchékhov, uma vez que a imobilidade supera os acontecimentos factuais (e os poucos infiltrados na dramaturgia são sempre interrompidos). Na prática, porém, a linguagem se organiza de modo irregular, por retalhos de diálogos e réplicas em desajuste que obedecem aos impulsos de expressão, revelando verdades íntimas, desejos, obsessões e falhas apenas timidamente.

Márcio Abreu não constrói propriamente uma história, mas uma composição, à qual a linguagem cede suas estruturas. O ritmo, atributo da prosódia, é chave para o funcionamento dessa engrenagem. A qualidade de sua direção está exatamente na sintonia fina que realiza, orquestrando os tempos e as nuances de silêncio e som, tensão e distensão, numa descontinuidade calculada. Como dramaturgo, reside no enredamento intrincado de temas sem que aparentemente nada suceda na superfície além da própria dinâmica conversacional. De um emaranhado de trivialidades, saltam frases memoráveis insinuando que têm mais a significar do que denotam, num mecanismo de embreagem pelo qual se pode alcançar outro nível de compreensão.

Ao jogar com a capacidade humana de dar significado ao que ouve e vê, a companhia reencontra o sentido cósmico que havia na obra de Leminski: a consciência do homem como único ser que lança seu olhar ao alto e ao incognoscível, tentando decifrar-lhe os sentidos. Aquele mesmo ser cuja expressão seminal é a da interrogação, da qual partirá para compreender seu estar no mundo e para percorrer a distância até o outro, seu desconhecido e semelhante, ainda que seja iniciando um diálogo banal.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Teatro brasileiro foge da tradição

ANÁLISE

LUIZ FERNANDO RAMOS

ENVIADO ESPECIAL A CURITIBA

São Paulo, segunda-feira, 29 de março de 2010


O teatro brasileiro está estranho. Como o teatro no mundo todo, reflete os impasses de uma época em que a dramaturgia já não é a mesma, mas resiste o impulso humano de criar narrativas cênicas. A considerar por uma amostragem do Festival de Curitiba, englobando tanto espetáculos da Mostra Oficial como do Fringe, percebe-se algumas recorrências que permitem agrupar em zonas comuns a diversidade exibida.

Como tendência dominante, estão os espetáculos construídos em processo colaborativo.

Entre esses, há aqueles em que o encenador assume a dramaturgia, como é o caso de "Vida", de Márcio Abreu, talvez o grande destaque do Festival, "Escuro", de Leonardo Moreira, e "Ruído Branco da Palavra Noite", da dupla Caetano Gotardo e Marina Trajan.

Há também alguns em que o encenador escreve a cena a partir de material anterior, mas ainda conta com a colaboração dos atores e atrizes, como nos casos de "Formas Breves", de Bia Lessa, com texto de Maria Borba, e "De como Me Tornei Bruta Flor", de Cibele Forjaz a partir de poema de Cláudia Schapira.

Outra vertente de colaborativo é aquela em que um texto dramático é reprocessado na encenação, como mostram os impactantes "Memória da Cana" de Newton Moreno, cruzando "Álbum de Família" de Nelson Rodrigues e "Casa Grande e Senzala" de Gilberto Freyre, ou "Travesties", de Caetano Vilela, relendo a peça de Tom Stoppard na chave da Ópera Seca.

Num outro grupo, que confirma de perspectiva distinta a mesma tendência, agrupam-se peças montadas a partir de dramaturgias fortes e autônomas, mas que encerram em si a dissolução da estrutura dramática tradicional. Incluem-se aí "In on It", de Daniel Macivor, encenado por Enrique Diaz, "Psicose 4h48", de Sarah Kane na leitura de Marcos Damaceno, ou "Como se Fosse o Mundo", texto do novíssimo Paulo Zwolinski apresentado em vertente radical por Roberto Alvim.

Ainda há dramas propriamente, mas mesmo esses transpiram os ares do espírito do tempo, quando mais que histórias acabadas com personagens bem definidos, o teatro oferece atos performativos que sobressaem às tramas. É o caso de "Música para Ninar Dinossauros", de Bortolotto, "Navio Ancorado no Espaço", evocação de Paulo José da poeta Ana Cristina César, partindo de texto de Maria Helena Kühner e dramaturgia de Walter Daguerre, "A Idade da Ameixa", de Aristides Vargas, dirigido por Guilherme Leme, e do bizarro "grand-guinol" de Paulo Biscaia, "Manson Superstar".

Na tradição do teatro épico, que desde meados do século passado lida com as alternativas de narrar o mundo para além do drama, destacam-se "Till", de Luiz Alberto de Abreu, com o grupo Galpão, "Macbeth", de Shakespeare, na versão de Aderbal Freire Filho, ou a adaptação de Edson Bueno das crônicas e da biografia de Nelson Rodrigues em "A Vida como Ela É".

As pulsões antidramáticas, e que chamam o público a se deter na matéria cênica bruta, poderiam ser apontadas mesmo em trabalhos irregulares, como os experimentais curitibanos "Chiclete e Som", de Nina Rosa Sá, e "Primeiro Crime", de Darlei Fernandes, ou os mineiros "Barba Azul" e "John e Joe", dos grupos Andante e Trama.

De algum modo, percebe-se em toda essa produção, ao lado da vontade de continuar contando histórias, a dificuldade de fazê-lo com as formas convencionais. É dessa tensão que advém a estranheza detectada.

JORNAL DO BRASIL

Festival de Curitiba: Fringe oferece cardápio variado de peças
Macksen Luiz
27/03/2010

CURITIBA - Desde 1998, quando o Festival de Curitiba incorporou o Fringe, reproduzindo a mostra paralela do Festival de Edimburgo, que esse corpo teatral vem crescendo exponencialmente. Se no primeiro ano eram sete espetáculos, nesta 13ª edição são mais de 350 montagens que disputam a visibilidade que o festival promove no curto espaço de sua realização. É uma oferta massacrante, em que cabem todo e qualquer franco-atirador, desde que tenha condições de ocupar algum dos muitos espaços disponíveis para a abrigá-los. A produção do festival apenas cria alguma infraestrutura para que os grupos possam se apresentar, mas o que trazem para mostrar, como chegar a Curitiba, e como aliciar o público para as apresentações, fica por conta e risco de cada grupo. Neste balaio teatral, cabe de tudo, desde um grupo de Iracemápolis, interior de São Paulo, que mostrou com um grupo de crianças A hora e vez de Augusto Matraga, até Cachorro, bem sucedido espetáculo de Vinícius Arneiro, como aconteceu neste ano.

Há apelos vulgares, experimentação equivocada, montagens de conclusão de curso de teatro, investidas amadoras, apostas comerciais, e tudo o que possa caber em uma feira que expõe tantas mercadorias. Com esta abusiva oferta, não há plateia para a maior parte deste derramamento de espetáculos, e o que se constata são salas com menos de uma dezena de espectadores, panfletagem dos grupos em torno da sede do festival, e algumas exibições gratuitas, como forma de atração. Ao longo dos anos e a partir da constatação de todos esses problemas, a direção do festival, mesmo mantendo a posição de não interferir na seleção dos espetáculos do Fringe, flexibiliza a ideia “democrática” da mostra, com eventual seleção para alguns espaços. Este ano, o teatro Novelas Curitibanas abrigou montagens escolhidos por um curador, o mineiro Chico Pelúcio, que trouxe propostas cênicas de Belo Horizonte e de São Paulo.

O grupo mineiro Trama mostrou John & Joe, da autora húngara Ágota Kristof, com direção de Eid Ribeiro. Num bar, o encontro de dois bêbados, sem rumo, desenrola uma conversa conduzida pela lógica alcoólica, na qual situações algo absurdas determinam e estabelecem as razões dessas existências vagantes. Num clima levemente beckettiano, com parcimônia de palavras e movimentos que se aproximam da mímica, o diretor conduz com empenho, mas sem criar efetiva atmosfera, o trio de atores. De como fiquei bruta flor, da Cia. Livre de São Paulo, traz um poema dramático de Claudia Shapira que trata da separação amorosa do ponto de vista feminino. Duas mulheres, em 10 etapas do desencontro afetivo, mergulham nas delícias do encontro, na dor da separação e na liberdade da superação. O texto de Shapira não demonstra vitalidade poética, banalizado por imagens que remetem ao convencional. A diretora Cibele Forjaz revestiu esse material pouco estimulante dos recursos de sua “máquina teatral”, que inclui o público como elemento ativo e o ator como veículo de construção cênica. Com duas atrizes, Lucienne Guedes e Mariana Senne, identificadas com o jogo narrativo da representação e da ritualização do ato teatral, ampliam os limites do texto.

O Fringe, naquele que talvez seja o seu melhor segmento, reúne a produção do teatro curitibano nos 11 dias do festival, destacando as montagens de diretores que mantem a diversidade cênica da cidade. Nesta edição, a amostra foi bastante satisfatória, não só pela volta de Felipe Hirsch à Curitiba, depois de anos de intinerância da sua Sutil Companhia, como pela inclusão de Marcio Abreu na mostra contemporânea. Hirsh, além de Cinema, apresentou o instigante Não sobre o amor, e volta a instalar a companhia na sua cidade de origem. Marcio Abreu, com a pulsante Vida demarcou lugar na cena atual, que se confirma pelo exercício em Descartes com lentes, em que utiliza o brilhante texto de Paulo Leminski no mesmo registro inteligente da sua escrita. A palavra é encenada por sua interioridade narrativa, descolada do dramático para reinventar-se, como no texto, outros pontos de recepção. Numa perspectiva menos inquieta, mas nem por isso mais “fácil”, o diretor Marcos Damaceno, com a sólida interpretação de Rosana Stavis, dimensiona com integridade o mergulho de Sarah Kane em Psicose 4h48. A vida como ela é – Nelson Rodrigues traz dramaturgia que evita o “óbvio ululante” de tantas colagens sobre o universo rodriguiano. Com a ambientação de um espetáculo teatro em plena concepcão, o diretor Edson Bueno cria paralelismos com alguma inventividade. Manson supestar prossegue na linha do diretor Paulo Biscaia Filho, que pede emprestado ao cinema e ao “trash” o material de suas montagens. Desta vez, com a “quadrinizacão” do crime da “família de Charles Mason”, que matou a atriz Sharon Tate, mulher do cineasta Roman Polanski, na década de 60, Biscaia está menos hábil na manipulação de suas obsessões cênicas.

Em outra mostra paralela, a do Sesi Dramaturgia, o diretor Roberto Alvim encenou um dos textos selecionados em concurso do Núcleo de Dramaturgia do Sesi Paraná. Como se fosse o mundo, do curitibano Paulo Zwolinski, a relação de um casal é repassada em várias estágios da vida em comum, com direito a violência velada e explícita. Próxima a um conto, com quadros estanques, e diálogos em ritmo literário, a peca de Zwolinski aponta mais para suas possibilidades futuras como autor, do que propriamente por esta primeira tentativa. Alvim confronta o casal com a plateia, criando uma contraluz através de luminosidade mortiça que incide diretamente nos olhos do espectador. Os atores são apenas sombras, que se delineiam-se, vagando pelo palco, figurando-se através das falas. Um artifício do diretor, que deste modo conferiu uma dimensão mais extensa e provocante do que o restrito e passivo alcance do texto.

Festival de Curitiba mostra quebra de fronteira entre teatro e artes plásticas

GUSTAVO FIORATTI

29 de março de 2010
da Folha de S.Paulo, enviado especial a Curitiba

No momento em que o ator Ranieri Gonzalez toma impulso para um mergulho de cabeça contra a parede cenográfica do espetáculo "Vida", fica em suspensão não só o ritmo alucinante de uma peça cheia de dilemas íntimos, com base na obra de Paulo Leminski, mas também uma espécie de simbologia metalinguística apontando o esfacelamento de fronteiras entre expressões artísticas, mais especificamente entre teatro e artes visuais.

Com essa peça sobretudo, mas também em "Cinema", de Felipe Hirsch, "Travesties", da Companhia de Ópera Seca, e "Um Navio no Espaço ou Ana Cristina César", dirigida por Paulo José, o festival representou um grupo de encenadores empenhados em reverter uma tradicional hierarquia das artes cênicas. Nestes trabalhos, cenário, luz e trilha sonora deixam de ser elementos ilustrativos.

Sinais dos tempos, estavam presentes na mostra contemporânea desta edição do festival cenografias assinadas por Daniela Thomas ("Cinema"), William Pereira ("Travesties"), Márcio Medina ("Till, a Saga de um Herói Torto") e Bia Lessa ("Formas Breves"). São nomes habituados a lidar com essa quebra; todos eles já exerceram alguma outra representação artística, ou como diretores, ou como escritores e intérpretes, ou como escultores até.

"Estive na Bienal de Veneza de 2009, e ali ficou muito evidente que as fronteiras entre expressões artísticas caducaram", diz Daniela Thomas. Sua cenografia para "Cinema" praticamente fundamenta a composição dramatúrgica da peça. É sobre o cenário, pensado também por Hirsch antes do texto, que surge o protagonista de uma história: o próprio cinema. Não é literal, mas está ali "o retrato de uma sala de rua de São Paulo, dessas que estão desaparecendo", define o diretor.

A iluminação reflete no rosto dos personagens, sentados numa plateia, a luz emitida por um projetor. Foi concebida por Beto Bruel, iluminador que já venceu três vezes o Shell.

De volta ao ator que se jogou contra o cenário de "Vida", atravessando uma de suas paredes, rasgando com o próprio corpo um ambiente onírico e claustrofóbico: quão próximo estaria ele de uma ação performática, expressão hoje mais relacionada às artes visuais?

Muito próximo, responde o diretor da peça, Márcio Abreu. "A interface com artes de outra natureza abre o campo de leitura do texto." Por trás daquela cena, existe um trabalho de materiais. O próprio cenógrafo, Fernando Marés, ganhou arranhões, testando a possibilidade de romper a parede com o corpo. Faz lembrar a dupla Marina Abramovic e Ulay em "Interruption in Space", de 1977, em que ambos se jogam contra a parede à exaustão.

O cenário de "Travesties" é outro exemplo, chegou ao teatro Guaíra em dois caminhões. Um amontoado de jornais e livros, além de mesas e cadeiras, que William Pereira usou para compor um tipo de fundo grandioso, mais comum em óperas, com estética acentuada pela iluminação do diretor Caetano Vilela. Impactante, o que era fundo veio à frente do espetáculo. Especialmente na chuva de livros do primeiro ato.

Para a curadora do festival, Tânia Brandão, a ascensão do trabalho de cenógrafos a um primeiro plano reflete o aprofundamento de pesquisas que, em parte, deriva do suporte financeiro de políticas públicas e leis de incentivo. "Se não fosse esse inchaço, acho que não teríamos conseguido fazer essa representação na Mostra Contemporânea", diz. Para o diretor do festival, o exemplo contrário é a própria edição do ano passado, que minguou por conta da crise mundial.

Renovação, afinal?

por Beth Néspoli

ESTADÃO
27.março.2010

No Caderno 2 de hoje, 27, falo sobre uma possível renovação do Festival de Curitiba, que vem perdendo relevância, com a curadoria que já começa a apontar no Fringe. É uma aposta. Tomara que ocorra e abra espaço para uma mostra curitibana dentro do festival com grupos como a Cia. Brasileira de Teatro, a Vigor Mortis, a Armadilha, a do Marcos Damaceno, o trabalho do Edson Bueno, os grupos que organizaram a Mostra Pequenos Conteúdos, entre outras que posso ter esquecido agora.
*
É preciso acabar com a indiferenciação do Fringe, atualmente tomado por produções curitibanas - 173 das 374 que participaram este ano. Um festival deveria ser um momento especial, uma espécie de suspensão na rotina das temporadas, para a observação do trabalho de artistas que estão buscando aprimoramento e avanço de linguagem, e que, por isso, valem ser vistos mesmo quando não alcançam a qualidade desejada. Não se exclui aí a importância da diversidade. Das comédias aos musicais para o grande público, a cena teatral deve ser ampla e democrática. Cada vertente do teatro deve ter seu espaço. Mas é preciso que sejam diferenciados até para que o público possa fazer escolhas conscientes, sejam elas quais forem.
*
Não se justifica o trabalho de estruturar um festival, evento que requer patrocinadores e uma logística trabalhosa, para abrigar o teatro de consumo, que pode ser visto a qualquer momento, em toda parte, entretenimento este que trabalha com recurso já gastos, facilmente reconhecíveis, com olhos voltados para a bilheteria e com o objetivo primeiro de agradar. Um espetáculo assim pode alcançar um bom resultado dentro do que se propõe, da mesma forma que, no outro extremo, a experimentação pode naufragar em não-comunicação. Não é de qualidade final que se fala, ainda que seja sempre desejada, mas de ponto de partida, de inquietação. Foi justamente a presença da inquietação nas primeiras mostras o que abriu e sedimentou o espaço do Festival de Curitiba no calendário cultural nacional. Tomara que essa posição possa ser mantida. Seria bom para o teatro, para o festival e para o público que o frequenta a cada ano.

BREVES IMPRESSÕES SOBRE O FESTIVAL

FIGURINO E CENA
BLOG DO ATOR, FIGURINISTA E CENÓGRAFO PAULO VINÍCIUS. CURITIBA/PR

DOMINGO, 28 DE MARÇO DE 2010

Vi a estréia da Companhia Brasileira, o espetáculo VIDA. Como já disse aqui no blog, gosto muito do trabalho do diretor Márcio Abreu, sempre presto muita atenção em como a palavra é trabalhada na dramaturgia. A forma de como o texto é interpretado pelos atores é uma preocupação recorrente nos espetáculos do Márcio. Apostos frisados, repetições constantes e uma maneira cotidiana de fazer a palavra caber na boca dos atores, já são marcas registradas na Companhia. As soluções criativas quanto à encenação também são elementos que me chamam muita atenção. Desta vez, o cenário foi grandioso com direito a parede de fundo móvel e outras revelações. A Companhia Brasileira fará uma nova temporada de VIDA em Abril, quem não conseguiu ver no Festival, não perca.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Sobre tudo, o nada, ou a vida

CADERNO TEATRAL


IMPRESSÕES DE ESPETÁCULOS POR LUCIANNO MAZA



Uma parte do teatro contemporâneo é considerada, por muitos, vazia. É o movimento que abdica das grandes questões, dos fatos dramáticos, da reflexão temática, para falar, de modo prosaico, sobre o nada. Nada este que, na verdade, é uma tentativa de falar de tudo, em especial das pequenas coisas, dos microcosmos. Algumas vezes, porém, assistimos um espetáculo que, partindo do nada, revela muito mais do que poderíamos esperar, sobre a vida. A nova montagem da Companhia Brasileira de Teatro - uma das principais, não apenas de Curitiba, mas do Brasil – se lança nesta direção, desde o título: "Vida", que, ao mesmo tempo que abarca um infinito de possibilidades, não quer dizer objetivamente nada. Apoiando-se na obra do conterrâneo Paulo Leminski, mais em suas ideias e ambiente, do que numa adaptação de seu trabalho, o grupo criou uma situação onde integrantes de uma banda ensaiam um número para o jubileu da cidade onde moram – eles não são de lá. Numa sala, sem janelas, os quatro músicos, que parecem amadores, desfiam suas angústias e anseios, aquilo que os incomoda e desejam, seja um aniversário esquecido, uma vontade de ir para o espaço, querer ser o outro, ou manter-se na quietude do silêncio. Rompendo com a estrutura ficcional de dramaturgia, os personagens, como na vida, não estão presos a uma única linha de raciocínio, ou a ações coerentes e premeditadas, eles percorrem pensamentos labirínticos, falas e interrupções, ao mesmo tempo em que usam o passado da lembrança como tentativa de contato, ao contar sua história a quem os escuta, buscam no presente da relação de interesse do público, para suas idiossincrasias, o vínculo do agora: “Alguém escapou?” insiste uma das figuras, em cena, de tempos em tempos. Existe ali uma infinidade de recursos que vêm se cristalizando na cena contemporânea, desde os personagens que se chamam pelo nome real de seus atores, até as referências pessoais a suas carreiras, isso, não necessariamente acrescenta ao excelente resultado do espetáculo, mas, de certa forma, é coerente a proposta do diretor e autor do texto (cuja dramaturgia divide com as atrizes) Márcio Abreu, que rende, principalmente, quando aprofunda-se nos pequenos temas levantados para, sem demora, os cortar, passar para outro, geralmente quando a emoção está quase acontecendo, negando o clímax, como, enfim, fazemos em nossos diálogos reais. Esta opção fica evidente na interminável sequencia de finais, já que o encenador provoca imagens e climas que parecem apontar para a resolução do espetáculo para, depois, seguir adiante... Exatamente como é a vida, com seus pequenos finais, mas na qual, sempre, vamos em frente. A qualidade dos diálogos está diretamente ligada ao trabalho de apropriação do elenco, sem exceção, os quatro atores criam um conjunto maravilhoso, e têm total entendimento da linguagem que pesquisaram, e levaram para a cena. Giovana Soar, Nadja Naira, Ranieri Gonzalez e Rodrigo Ferrarini, tornam interessante, e atenta, a experiência de acompanhar a vida de seus personagens - ou seria a vida deles mesmos, ou ainda, a nossa própria vida? Consistente, "Vida" cumpre com sucesso sua proposta, bastante clara, e, com sua maestria, é um trabalho teatral de alta qualidade e valor artístico. O espetáculo, que estreou no Festival de Curitiba, entra em cartaz na cidade a partir de Abril.

O editor viajou a convite do Festival de Curitiba.

Sem historinha, mas com sentido

por Beth Néspoli

Seção: Festival de Curitiba/Só uma opinião

24.março.2010

“Não gostei do espetáculo não, não tem história.” Esta é uma cobrança que ainda se ouve muito na saída dos espetáculos. Mais do que nunca, aqui no Festival de Curitiba, onde quase 400 peças estão em cartaz, muitas delas são criadas na linha que se costuma rotular de “experimental”. Nada contra a fábula, a narrativa no teatro. Se encenada com inteligência, dos gregos a Shakespeare, tem intenso poder mobilizador. E pode ser muito, muito mais significativa do que um “experimento” em que fragmentos não passam disso, pedaços que nem com muita boa vontade o público pode unir em uma construção com um mínimo de sentido. Mas a narrativa de uma fábula ou situação não é a única forma de se construir uma poética cênica. O público das exposições de artes plásticas já transita por instalações com certa fluência, usufruindo das sensações provocadas, construindo sentidos. No teatro, ainda há muita resistência a uma estética equivalente.

Vida, espetáculo da curitibana Cia. Brasileira de Teatro, dirigida por Marcio Abreu, é uma dessas montagens em cartaz na mostra oficial que, de certa forma, coloca em cena uma instalação. O simples fato de fazerem parte de uma banda que ensaia um “número” para uma apresentação cívica justifica a reunião das quatro figuras trazidas ao palco pelos atores Giovana Soar, Nadja Naira, Ranieri Gonzalez e Rodrigo Ferrarini. É possível falar de vida e morte a partir de um encontro assim. E de várias maneiras. Nada é óbvio na expressão cênica que surge a partir daí. Questões prosaicas, pequenos dramas cotidianos e contradições humanas e universais – como o embate entre o desejo de ser livre e o de estar seguro – vêm à tona numa formalização muito elaborada, cheia de humor e surpreendente. Com dramaturgia criada em sala de ensaio pelos atores e com texto final do diretor, o espetáculo não se funda, como esse mote faz parecer, na facilidade da discussão entre amigos, conversa de bar. Os atores quase não dialogam. As conversas se voltam para o espectador, cuja presença é assumida. Contribui para a qualidade do que se faz e diz a matéria-prima com a qual trabalham: a poesia de Leminski, Maiakovski, Beckett, Haroldo de Campos, entre outros grandes autores – devidamente deglutidos. Com uma caneta a laser, Rodrigo Ferrarini ilumina um ponto num mapa do Planeta e compartilha com o público uma reflexão sobre o fato de alguém escrever algo num ponto obscuro do Planeta e essa ‘obra’ interessar pessoas que vivem muito longe no espaço e no tempo. Vida tem diferentes andamentos para tratar de variações sobre esse tema, a arte como esse ponto de luz que atrai a atenção e interessa ser visto. Que liga os humanos como construtores de uma cultura e os diferencia dos animais.

Em uma segunda camada, o grupo traz para a cena inquietações que são de ordem estética. Em uma delas, Ranieri é empurrado para o palco com um figurino feminino. “Vestiram essas roupas em mim e pediram para fazer alguma coisa”, diz ele, não exatamente com estas palavras. Ele canta com postura de Diva e Giovana Soar, em um ataque meio histérico de fã, diz: “Eu queria ser você, ver o mundo através de você, a partir de sua visão”. Pode-se “ler” aí uma “problematização” do personagem dramático que pede a interpretação na qual o ator “encarna” o outro. O diálogo como canal de comunicação também é posto em questão, na estrutura da peça, e na cena inicial, na qual o ator Rodrigo Ferrarini fala com o público. Mas é apenas uma possibilidade de leitura nesse espetáculo que alcança polifonia.

Quando realizada em sala de ensaio por atores e um diretor talentoso, como é o caso da Cia. Brasileira, a dramaturgia torna-se significativa e se harmoniza com a escrita cênica. Mas o excesso costuma ser o calcanhar de Aquiles do processo colaborativo. Vida estreou no Festival de Curitiba e talvez alguns cortes ampliassem sentidos pelo efeito de concentração, em vez de reduzi-los. Operação sempre difícil de ser feita por envolver afetos, apegos, sobretudo quando todas as cenas estão bem-elaboradas. No teatro, porém, menos costuma mesmo resultar em mais.

UOL Entretenimento

Raul Cortez e Paulo Leminski são homenageados em grandes espetáculos no Festival de Curitiba

ROBERTO MORENO
25/03/2010
Enviado especial a Curitiba*

Atores da Companhia Brasileira de Teatro encenam "Vida" no Festival de Curitiba

Raul Cortez e Paulo Leminski foram homenageados em duas peças no Festival de Curitiba. Uma clássica, outra inovadora. As duas levaram dois anos para chegar aos palcos. Uma passou esse tempo captando recursos, a outra pesquisando a vida do homenageado, bancada por patrocínio.

Cortez, ator, morto em 2006, dedicou 50 anos ao teatro. Leminski, poeta, morto em 1989 aos 45 anos de idade, é um dos símbolos de Curitiba.

"A Loba de Ray-Ban", de Renato Borghi, é a "versão original" de um dos maiores sucessos de Cortez, "O Lobo de Ray-Ban", que ficou em cartaz por quatro anos a partir de 1987.

Cortez interpretava um ator cinquentão em crise, que questionava o significado da arte, era casado com uma atriz (Christiane Torloni), e apaixonado por um ator iniciante (Leonardo Franco). A peça atual é dedicada a ele e à atriz Dina Sfat, para quem o roteiro havia sido escrito originalmente. Doente, Sfat não seguiu no projeto e a loba teve de virar lobo. A versão feminina ficou esquecida durante anos - nem o autor sabia se ainda existia em algum lugar - e encontrada por Leonardo Franco na Biblioteca Nacional. Na nova montagem, Leonardo é o marido, Christiane é a cinquentona e Maria Maya entra no elenco como uma "lobinha", a atriz iniciante. José Possi Neto dirigiu as duas versões.

"A Loba" estrou em São Paulo em novembro de 2009 e chegou a Curitiba já como sucesso de público. Para a peça, foi reservado o maior teatro do Estado, com capacidade para 2.400 pessoas, lotado nas duas apresentações. Num espetáculo afinadissímo, de interpretações irretocáveis, Torloni e companhia mostraram o que o público curitibano queria ver - uma grande atriz, uma bela história, um pouco de humor e um pouco de drama. Tudo dentro dos conformes. Nem o homossexualismo, questão tensa nos anos 80, espanta mais.

"VIDA" NO FESTIVAL DE CURITIBA


Humor e drama

"Vida", da Companhia Brasileira de Teatro, foge dos conformes. Num teatro de 177 lugares, o público, visivelmente "estrangeiro", ria da falta de ar condicionado a cada vez que um ator dizia "está abafado aqui". Havia humor e drama, havia uma bela história, porém fragmentada, e havia uma grande atriz, Giovana Soar, porém o que importa na CBT não são as estrelas, é o grupo.

A obra de Paulo Leminski vem sendo esmiuçada há dois anos, e o espetáculo construído com leituras e ensaios abertos e a apresentação de um solo teatral a partir do texto "Descartes com Lentes", de Leminski.

O resultado é um espetáculo surpreendente, em que cenário, música, plateia e elenco se unem para contar uma história que vai além da biografia do homenageado; é a história da vida, qualquer vida, reconstruída num enredo singelo: um grupo de músicos ensaia para sua apresentação no aniversário da cidade, qualquer cidade.

Se houvesse um jogo, uma disputa entre "A Loba de Ray-Ban" e "Vida", "Loba" venceria no critério de movimentar a cultura de Curitiba. "Vida" venceria no critério de movimentar o teatro, dar um novo passo na dramaturgia.

*O jornalista viajou a convite do festiva

JORNAL DO BRASIL

O teatro como extensão da existência


Macksen Luiz 
25 de Março de 2010

Com Vida, ambicioso título de condensada abrangência, a Companhia Brasileira de Teatro estreou no Festival de Curitiba a encenação da instabilidade do teatro como extensão do inescapável da existência.

Vagamente baseado na obra do poeta curitibano Paulo Leminski, que fornece muito mais à temperatura da sua produção literária do que propriamente seus escritos, Vida percorre escaninhos do que se oculta no fluxo do cotidiano.

O teatro é usado em formas desconcertantes, que desmentem o que aparentemente seus códigos indicam, como as banalidades de tantas palavras jogadas no ar, escondendo desejos e frustrações recônditas, No lugar sem janelas, um lugar nenhum, em que se está, que já foi de passagem, e agora é de ficar, e de onde se quer sair, muitas vezes, um homem propõe perguntas, que ele mesmo tem dificuldade em responder.

Professoral, procura situar o mundo como um espaço geográfico, com turbulências geológicas, movimentos humanos que se globalizam nas similitudes, despejando, qual metralhadora faladora, na área planetária do viver, as minudências dos comentários sobre o tempo ou o patético de uma comemoração de aniversário. Onde se está, quase nunca é onde habita a humanidade de cada um, mas a constatação é de que todos nós estamos aqui.

À qual se segue a pergunta definitiva: “Alguém escapou?”.

Ainda que possa parecer complexa essa arena em que se jogam cenas que perseguem o brilho que haverá por detrás do nevoeiro do dia a dia, a encenação de Marcio Abreu é uma sequência de gestos inesperados e palavras dissonantes de estranhamento ao conhecido. Na vida e no teatro, o que se sabe nem sempre é certeza, e a representação de ambos, se situa, na perspectiva do diretor, nas evocações da memória.

O ator, que tem suas tatuagens transformadas em performance, e um poema que se transforma em canção brega são ensaios permanentes de um espetáculo que nunca está acabado, como uma banda que ensaia, e há sempre os mesmos erros no ritmo.

O cenário de Fernando Marés, que se movimenta e se amplia de modo suave, confina o dramático num espaço que se expande e contrai. A música de André Abujamra está integrada ao espírito desafiador da cena. Nadja Naira, uma figura intrigantemente silenciosa, demonstra os recursos de interpretação bem além da depurada técnica corporal.

Giovana Soar refina a sua atuação com humor de contornos irônicos. Rodrigo Ferrarini domina a torrente de palavras que derrama sobre o público, como um entertainer de uma aula.

Ranieri Gonzalez é arrebatador como o malabarista de interpretação elástica, que se transfigura a cada intervenção.

Uma atuação impecável.

Macksen Luiz viajou a convite da organização do Festival de Curitiba
Quinta-feira, 25 de Março de 2010