Autor: Daniele Avila
Crítica das peças Otro, do Coletivo Improviso, e Vida, da Companhia Brasileira de Teatro
Procuro aqui puxar e ligar alguns fios. Dois espetáculos fizeram curtas temporadas no Rio de Janeiro nesse mês de maio: Otro or weknowitsallornothing, do Coletivo Improviso, do Rio, e Vida, da Companhia Brasileira de Teatro, de Curitiba. Otro estreou aqui com jeito de pré-estreia, fez três semanas na programação do Projeto Entre, no Espaço Cultural Sérgio Porto e segue para outros países. Vida, depois de estrear no Festival de Curitiba e cumprir temporada por lá, fez seis apresentações no Espaço Tom Jobim.
Por algum motivo, estes dois trabalhos, bem diferentes em diversos aspectos, parecem lidar – cada um a seu modo – com uma espécie de universo estético comum, e parecem exemplares (na falta de uma expressão melhor) de uma certa forma de pensar e fazer teatro que se destaca da maior parte dos espetáculos em cartaz atualmente no Rio. Talvez a suposição de uma aproximação entre as duas peças não se sustente, mas vale a tentativa. Os fios que aqui procuro puxar e ligar seriam apontamentos sobre as possíveis questões estéticas deste universo comum aos dois espetáculos.
Vale ressaltar que não pretendo fazer nenhum tipo de comparação que envolva julgamentos de valor, mas observar aproximações e diferenças em pontos comuns. Estes pontos são problemas, no bom sentido. São elementos que provocam uma tensão interna no espetáculo e na relação com o espectador.
Nome
Nas duas peças, os atores estão em cena com seus próprios nomes, com depoimentos que são (declaradamente no caso de Otro) ou podem ser (o que é problematizado em Vida) deles mesmos. Em Vida, os atores não parecem estar em cena como são no cotidiano, mas também não estão fazendo personagens. Há uma construção precisa na fala, nos corpos, no ritmo, mas é uma construção de si ou a partir de si. Em Otro, os atores também não fazem personagens, mas dão a ver seu trabalho de atuação, expõem o processo de pesquisa, apresentam relatos da sua vida real. Em ambos os casos, existe uma relação de transparência na presença dos atores como artistas criadores.
Eles são como tradutores de si mesmos. Não acho que seja o caso de forçar a categoria performance em nenhum dos dois casos. Acho que há uma tendência, ainda hoje, em chamar de performance, happening, instalação, qualquer coisa que não se encaixe no drama. Acredito que esses dois trabalhos conseguem fugir das categorias prontas. E talvez seja possível dizer que eles põem em deriva as categorias pre-existentes de trabalho de ator. Eles não fazem personagens, mas também não fazem performance. Não digo, aqui, que estão inaugurando uma forma nova de fazer, apenas aponto que constituem um exemplo de uma certa tendência de experimentação no trabalho de ator, que também pode se verificar, por exemplo, no trabalho da Cia Vértice de Teatro.
No caso de Vida, parece que há uma espécie de consolidação, uma maturidade mais evidente na lida com o que se pode chamar de dramaturgia contemporânea, que já era clara em montagens anteriores do grupo, mas que aqui vai um pouco mais longe. Em Otro, a pessoalidade, a quase identidade entre a pessoa real do ator e a instância que ali se apresenta não dá tanto a ver o trabalho do ator no momento presente, mas insere a cena numa sequência temporal anterior ao espetáculo. A identidade, neste caso, parece menos um problema do fazer e mais um problema do criar.
Dança
A dança tem um papel importante em ambos os espetáculos, embora esteja articulada de maneira diferente na dramaturgia de cada um. Em Otro, a dança está imbricada na cena, na concepção mesma do espetáculo, está no corpo de alguns atores e na forma como se deslocam. Há diferentes momentos em que a dança é cena. A dança é forma, forma desse teatro, da pesquisa desse grupo. Mas há um momento em que todos fazem uma coreografia. É um ponto de descontração, que tem um certo humor, talvez por conta da visível pouca habilidade de um ou de outro, mas também por se tratar de uma coreografia simples, meio boba, que não demanda uma virtuosidade, ou ainda por que envolve objetos aleatórios, de dimensões muito diferentes, retirados do cenário naquele ponto. O humor dessa coreografia talvez esteja numa certa referência aos musicais – não os musicais do teatro, mas os musicais do cinema.
Em Vida, a dança parece entrar a princípio como tema. Um dos atores, Ranieri Gonzalez, conta que sempre quis dançar, mas que seu corpo não é próprio para a dança. Então ele relata uma apresentação de dança de velhinhos, com movimentos simples. Ele começa a fazer e narrar os movimentos, acompanhado por Nadja Naira e Rodrigo Ferrarini. Aos poucos, aquela “demonstração” se transforma em dança. Em poucos segundos, o espectador é surpreendido pela sofisticação dos movimentos e pela combinação de força e delicadeza de Nadja e Ranieri, numa cena que funciona como uma epifania do espetáculo. A dança aqui é conteúdo, por assim dizer, que num piscar de olhos vira forma. Vemos ali que aqueles atores podiam dançar o quanto quisessem. Depois, é possível perceber que eles, de certa formam, dançam a peça toda. Há ritmo e precisão durante todo o espetáculo, e a duração dos diálogos, das falas monológicas e dos silêncios é muito determinante para a produção de sentidos. Arrisco dizer que a dramaturgia de Vida é texto dançado. Contribui para essa consciência de ritmo, andamento e duração, a trilha de André Abujamra, que ganha evidência pela presença de Gustavo Proença, músico que acompanha o espetáculo logo abaixo do palco, à direita, fazendo algumas intervenções ao vivo.
Espaço
Em ambos os espetáculos, o cenário se coloca como uma espécie de espaço livre para a criação e a experimentação. Em Vida, a cena se dá numa sala de ensaio. A cenografia de Fernando Marés cria as paredes de uma sala de ensaio, com algumas cadeiras e uma mesa de madeira. Os atores estão ali como integrantes de uma banda que ensaiam para tocar numa festa da cidade. A parede do fundo é móvel e joga com as dimensões da sala, com as relações de distância e proximidade. Não se trata de um espaço que localiza a ação no tempo e no espaço ou num ambiente reconhecível para o espectador. Por mais que o cenário apresente uma sala de ensaio, ele acaba criando um espaço vazio, uma potencialidade.
O cenário de Aurora dos Campos, em Otro, não representa nenhum lugar específico, embora ofereça alguns rastros de lugares reais. A cenografia cria um espaço que também se configura a partir de sua virtualidade: um espaço livre, um pouco abstrato. As cadeiras e os pisos (recortes de linóleo que mimetizam pisos) funcionam como elementos básicos de lugares possíveis, recursos mínimos para instituir novas cenas ou para demarcar áreas do espaço cênico. Esses e outros elementos de cena atuam como pontos de partida ou novos começos, mantendo sempre o espaço aberto para o que vai acontecer em seguida.
Essa concepção de espaço que aparece nos dois trabalhos realiza uma operação importante na relação com o espectador: um convite a uma espécie de não-expectativa, a uma disponibilidade criativa, necessária para a fruição do espetáculo.
Alteridade
O outro é o ponto de partida de Otro, como se pode deduzir. Mas tem um papel importante em Vida. Talvez seja possível pensar que a alteridade é uma questão pertinente ao teatro, de um modo geral, tendo em vista a presença de corpos no espaço cuja não-identidade é imediatamente visível. Mas a alteridade em Otro é mais como um tema, enquanto em Vida, é uma condição de possibilidade das relações.
A pesquisa do Coletivo Improviso, pelo menos no que diz respeito ao que foi selecionado para o espetáculo, envolveu deslocamentos dos atores na cidade do Rio de Janeiro. Esse deslocamento, que partiu da Zona Sul da cidade para a Zona Oeste e outras áreas, prioriza um deslocamento do ator para o ambiente de outras classes sociais. O outro é observado como um objeto de estudo, como personagem cuja história de vida ou momento de contato com um dos atores/pesquisadores se transforma em narrativa. A relação com a alteridade é quase de curiosidade. Os relatos se dão como uma tentativa de trazer a realidade para dentro da cena em quadros narrativos. As projeções em vídeo de Felipe Ribeiro e a trilha sonora de Lucas Marcier criam um clima que estetiza esses recortes do real. O outro é apresentado, desenhado; o experimento com o outro é como uma hipótese sobre uma amostra da natureza – sempre mediada pelo olhar do pesquisador, o ator. Nesse jogo, é justamente esse olhar que fica em evidência: tendo a alteridade como ponto de partida, é a identidade de cada um que se revela nas formas de relatar.
Essa questão é trabalhada de outra maneira pela Cia. Brasileira. O outro é o outro que está mais próximo – o outro ator que está ali do lado todos os dias – ou ainda o outro de si. O Rodrigo que está em cena não é exatamente o ator Rodrigo Ferrarini, mas um outro que também é ele. Identidade e alteridade estão misturadas, problematizadas. Uma das cenas do espetáculo mostra o ator Ranieri Gonzalez falando sobre as suas tatuagens. O espectador pode desconfiar se o que ele está dizendo é real, se aquele “texto” é do próprio ator ou se aquele Ranieri que está ali é uma construção – mesmo diante das tatuagens, que estão lá e que não parecem falsas. Muitos pedaços de diálogos se dão como um embate abstrato entre aquelas pessoas, como se a simples presença num espaço comum trouxesse à superfície a condição de alteridade. O deslocamento é mútuo. Os outros se encontram: a alteridade é experiência, mais que experimentação. Assim aparece, em Vida, o outro no que está mais perto e o outro de cada um. A alteridade é como uma identidade em deriva.
Autoria
É característica das duas obras a relação co-criativa entre encenação e dramaturgia e uma tendência à horizontalidade na autoria. Vale observar a distribuição da ficha técnica de cada trabalho. Em Vida, Marcio Abreu assina texto e direção, mas divide a dramaturgia com as outras integrantes do grupo, Nadja Naira e Giovana Soar , atrizes do espetáculo. Existe então uma noção de dramaturgia que é diferente do texto, cuja feitura está imbricada na atividade da direção. Em Otro, a dramaturgia fica a cargo de Enrique Diaz e Cristina Moura, que assinam a direção, sendo que ambos estão em cena e também assinam criação junto com o restante do elenco: Daniela Fortes, Denise Stutz, Felipe Rocha, Raquel Rocha, Renato Linhares e Thierry Tremoroux. A dramaturgia ainda conta com a colaboração de Alex Cassal. Temos então as instâncias direção, dramaturgia e criação espalhadas entre os integrantes do processo, além da presença de mais de vinte pessoas que participaram de residências e conferências. Enrique Diaz assina o projeto. É interessante notar na ficha técnica de Otro essa ênfase no caráter processual, de pesquisa, na criação. Em Vida, é o grupo, a Companhia Brasileira de Teatro, quem assina criação e realização. Da mesma forma que vemos uma horizontalidade com relação à autoria, vemos artistas responsáveis pela realização de seus projetos.
A relação com as referências também é parecida. No espetáculo da Cia Brasileira, Paulo Leminski é a primeira referência, embora diversos artistas (de teatro, literatura, poesia, dança e cinema) façam parte do universo autoral da pesquisa: Pina Bausch, Emir Kusturica, Samuel Beckett, James Joyce e outros autores, como os dramaturgos franceses que integram o currículo de montagens do grupo: Jean-Luc Lagarce e Philippe Minyana. Em Otro, as referências estão mais nos procedimentos e exercícios do que em autores, embora apareçam nomes como Clarice Lispector e Sophie Calle. Mas, mesmo a relação de Vida com Leminski, que é mais declarada, não é uma relação de citação. É uma relação subjetiva, de apropriação e maturação, difícil de se nomear.
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Outras questões poderiam ser observadas e os dois trabalhos merecem análises mais detalhadas que essa tateante aproximação. Mas ficamos por aqui. É importante pensar por que estes dois espetáculos ficaram tão pouco tempo no Rio. Que lugar tem esse tipo de pesquisa no “circuito” de teatro do Rio? Os espaços em que estes espetáculos ficaram em cartaz mostram intenção de pautar trabalhos mais autorais. O Projeto Entre inicia a ocupação do Sérgio Porto com uma proposta de curadoria e gestão, com uma programação de teatro, dança, artes visuais e atividades de discussão teórica. O Espaço Tom Jobim já assumiu outros projetos mais arriscados no que diz respeito à aceitação e interesse do público, como a programação internacional no segundo semestre de 2008 (mas, por outro lado, o espaço também tenta emplacar sucessos insípidos).
De qualquer modo, estes espetáculos, que parecem ter um potencial de chamar um público para o teatro carioca que não aprecia tanto as formas mais tradicionais de teatro, apenas passam por aqui, a título de exceção, e são vistos pelos artistas e estudantes de teatro. O público maior, que só vai assistir o que está mais visível, mais à mão, fica de fora, não tem nem oportunidade de ver. Se essa observação faz sentido, é um sinal de que os teatros do Rio e os mecanismos de incentivo às artes cênicas na cidade carecem de um pensamento sobre a programação de teatro da cidade, sobre a diversidade de opções que podem ser oferecidas aos espectadores. O público de teatro do Rio (que existe, que está aí) acaba bombardeado por uma série de espetáculos marcados por uma completa ausência de questionamento das formas de fazer e pensar o teatro, alguns são até reproduções de espetáculos criados por outras pessoas. Nesse sentido, seria iteressante se espetáculos como Otro e Vida ficassem mais tempo em cartaz na cidade. Eles poderiam ter uma boa relação com um público maior.
Informações sobre futuras temporadas no site do Coletivo Improviso e da Cia Brasileira de Teatro.
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