sexta-feira, 14 de maio de 2010
Haicai performático
Valmir Santos
http://www.teatrojornal.com.br/
O encontro das artes cênicas com a literatura é atávico, linguagens que se beijam não é de hoje. Em ano até aqui marcado por significativa incidência de escritores cuja vida ou obra são evocadas em cena (Ana Cristina César, Clarice Lispector, Lima Barreto, Fernando Pessoa, Machado de Assis, Patativa do Assaré, Dostoiévski, García Márquez, etc.), um dos desafios dos criadores do teatro é convencer o espectador a deslocar-se do papel de leitor, deixar-se levar por outras veredas e expectativas que não aquelas desbravadas nas páginas de seu autor dileto. Sentir como a poesia, a prosa, o ensaísmo e a tradução podem ampliar distintos horizontes da arte ao vivo.
Vida é justo um exemplo. Não há Paulo Leminski e há todo o Paulo Leminski em Vida, a visita da Companhia Brasileira de Teatro, de Curitiba, ao universo do conterrâneo mais varrido das letras paranaenses, para espanto e deleite da cidade – agora é que são eles – e do Brasil.
Assim como a palavra não constitui signo absoluto na escrita do autor de Catatau – ela é sempre entranhada a outras pontes imaginárias, mesmo quando no osso -, o texto do diretor Marcio Abreu e a dramaturgia que assina com as atrizes Giovana Soar e Nadja Naira encerram desvios para alcançar o seu próprio objeto de desejo. Apropriam-se da liberdade de linguagem que caracterizou a existência e a produção literária desse artista para construir uma galáxia particular no palco.
O espírito é libertário, primo do literário. Lançando mão da fábula e da fantasia, Vida ergue-se sem dependência biográfica, sem a promissória estilística do poeta. A Companhia Brasileira de Teatro afirma ter investido mais de ano e meio em pesquisa de campo, bibliografia, experimentos. O espetáculo pode ser lido como um haicai performático em suas estruturas e conteúdos livres e inerentes à cena contemporânea. Descama expectativas dramáticas padrões para incorporar à narrativa procedimentos sintéticos mais evidentes da performance, das artes visuais e da música. E sem jamais ostentá-los. Um projeto afinado à trajetória de quem o move – o luminescente Leminski - e radica o ato criador à condição sem a qual não se respira.
A variante exposta linhas atrás entre texto e dramaturgia sugere um primeiro indício de estranhamento. Abreu assina o que plasma de si mesmo na lida com os escritos do poeta ou os coteja em citações transversais (Maiakóvski, Haroldo de Campos, Beckett, Mishima, Pina Bausch, Chagal, Cristo, Bashô e Cruz e Sousa, entre outros – os três últimos biografados por Leminski). Já as duas atrizes do núcleo juntam-se a ele para dispor o verbo no palco, uma dramaturgia inscrita também no desenho espacial, nos objetos, no trançado do elenco com eles.
O tempo é indefinido. O lugar, sem portas, sem janelas. Quatro figuras mal esboçadas no início aos poucos dão liga ao fluxo e ao território percebidos pelo espectador. Nada é elementar. Há duas mulheres (Giovana e Nadja) e dois homens (Ranieri Gonzalez e Rodrigo Ferrarini). Eles atendem pelo nome dos atores. Encontram-se naqueles dias para ensaiar. Tocam e cantam na banda escalada para se apresentar no clube social em plena festa de jubileu da cidade. A apreensão precipita inseguranças individuais e coletivas para além dessas quatro paredes de cores desbotadas – sendo a quarta a da platéia, derrubada desde o primeiro segundo: o narrador/Ferrarini surge no corredor da sala e caminha em direção ao espaço cênico. Tem-se a medida do desaguar desse quarteto desde si.
A genealogia da peça acolhe breves excertos biográficos dos artistas envolvidos. Desenha-se em cena a curva entre a tela em branco dessas figuras, no início, e a evolução para outros pontos de fuga, as constituições do drama humano sem retoques: desejos, inseguranças, frustrações, felicidades, medos, desamores, prazeres, virtudes, amoralidades, e por aí vão. Distraída, a noite vence com fortes sentimentos tragicômicos. Emoções que nos acompanham após a sessão e dão o que falar e pensar sobre o cotidiano lá fora, a qualidade das relações interpessoais ou em comunidade.
O narrador conduz e é conduzido no passeio pela incongruência das coisas, das pessoas, dos acontecimentos lembrados, vividos ou projetados. Acompanhamos uma expedição pelo aqui com apoio do mapa-múndi pênsil na parede de fundo. Uma parede inteiriça, como as demais, do pé ao teto. Uma parede móvel com uma portinhola quase clandestina. Essa parede é móvel e molda o campo de visão em vários momentos. Não demora, o impacto monumental da cenografia de Fernando Marés logo se revela um mecanismo funcional e afins com a despojamento da proposta coadunada ao desenho de não-luz de Naira. O espetáculo descarta o efeito espetacular.
Leminski escreveu: “A interrogação é o próprio fundamento do diálogo, o reconhecimento da diferença entre o eu, que eu sou, e o eu que o outro é, separados e próximos pela prática da linguagem, hiato e ponte”
Foto: Elenize DezgeniskiHá cadeiras de madeira, uma mesa, um ventilador, um microfone, instrumentos musicais (bumbo, trompete, guitarra, pratos metálicos e voz), enfim, um essencialismo dissimulado para uma viagem tão complexa como envolvente no seu reparte de quatro histórias justapostas. Daí o bordão do narrador preocupado em divagar pelas ideias sem perder o chão de estrelas: "Alguém escapou?", pontua, com seu jeito didático que seduz o público por reflexões sagazes.
A arte da música é capítulo à parte, está na razão de ser da banda e nos lembra com quantos descompassos é feita a presumida harmonia. Sampleia a diversidade sonora que ao cabo é ainda a da língua, a da diversidade sexual, a da pluralidade ideológica e a de todas as variações para o tema que não quer calar: como viver junto? Essa dimensão é capturada pela versatilidade dos atores; pela contracenação na boca de cena com o músico Gustavo Proença (sopros, teclados e percussão); pela trilha composta originalmente por André Abujamra, que flerta com o acaso e soa mais incidental que programado, tudo a ver com o ritmo da encenação; e ainda pela direção vocal do texto por Babaya, a preparadora que equaliza a partitura de cada criador em busca de outros pulsares.
Um dos méritos de Vida é conceber essa cartografia cênica, poética e musical sem abrir mão da capacidade de afetar seu interlocutor, de emocionar com suas metáforas em pencas. É um trabalho de apurada base científica formal e linguística, à altura da sofisticação intelectual de Paulo Leminski. E, como ele, não enverga a armadura do saber ensimesmado. Preza o poder de comunicar-se e persegue a dimensão popular da palavra sem barateá-la.
Em abril, no último fim de semana da temporada de estreia, no Teatro José Maria Santos, a Companhia Brasileira de Teatro lotou as sessões atraindo um público que, em sua maioria, encontrava-a pela primeira vez com os artistas desse grupo que já conta uma década. Boa parte desses espectadores não conheceu as criações anteriores com textos de Julio Cortázar, Philippe Minyana, Jean-Luc Lagarce, etc. A gente de Curitiba não fugiu da raia leminskiana e viu-se um pouco representada ali, bem como a cidade que transparece humana em seus humores. Como numa das passagens a respeito de uma cidade onde "as pessoas fazem cara de nada", nas ruas ou nos elevadores, "como se a cidade estivesse vazia".
Como se.
Vida é uma criação ousada, inventiva. Joga limpo, ligeiro, um instalar de dedos. Entre as cenas memoráveis, uma das mais difíceis - para quem faz e para quem vê – é quando mergulhamos no breu por cerca de dez minutos. Tudo permanece como está, inclusive o ir e vir no tablado, os diálogos sobre tentar acender um fósforo para minimizar o baque no clima de uma festa de aniversário. Sob tensão dos dois lados, no palco e fora dele, a teatralidade é sustentada, mais do que nunca, pela instância da escuta. A escuta tão cara nos dias de hoje e aliada fundamental da palavra. Eis a revolucionária imaginação no poder, faceira e flagrante feito um poema de Leminski.
(12 de maio de 2010)
http://www.teatrojornal.com.br/
O encontro das artes cênicas com a literatura é atávico, linguagens que se beijam não é de hoje. Em ano até aqui marcado por significativa incidência de escritores cuja vida ou obra são evocadas em cena (Ana Cristina César, Clarice Lispector, Lima Barreto, Fernando Pessoa, Machado de Assis, Patativa do Assaré, Dostoiévski, García Márquez, etc.), um dos desafios dos criadores do teatro é convencer o espectador a deslocar-se do papel de leitor, deixar-se levar por outras veredas e expectativas que não aquelas desbravadas nas páginas de seu autor dileto. Sentir como a poesia, a prosa, o ensaísmo e a tradução podem ampliar distintos horizontes da arte ao vivo.
Vida é justo um exemplo. Não há Paulo Leminski e há todo o Paulo Leminski em Vida, a visita da Companhia Brasileira de Teatro, de Curitiba, ao universo do conterrâneo mais varrido das letras paranaenses, para espanto e deleite da cidade – agora é que são eles – e do Brasil.
Assim como a palavra não constitui signo absoluto na escrita do autor de Catatau – ela é sempre entranhada a outras pontes imaginárias, mesmo quando no osso -, o texto do diretor Marcio Abreu e a dramaturgia que assina com as atrizes Giovana Soar e Nadja Naira encerram desvios para alcançar o seu próprio objeto de desejo. Apropriam-se da liberdade de linguagem que caracterizou a existência e a produção literária desse artista para construir uma galáxia particular no palco.
O espírito é libertário, primo do literário. Lançando mão da fábula e da fantasia, Vida ergue-se sem dependência biográfica, sem a promissória estilística do poeta. A Companhia Brasileira de Teatro afirma ter investido mais de ano e meio em pesquisa de campo, bibliografia, experimentos. O espetáculo pode ser lido como um haicai performático em suas estruturas e conteúdos livres e inerentes à cena contemporânea. Descama expectativas dramáticas padrões para incorporar à narrativa procedimentos sintéticos mais evidentes da performance, das artes visuais e da música. E sem jamais ostentá-los. Um projeto afinado à trajetória de quem o move – o luminescente Leminski - e radica o ato criador à condição sem a qual não se respira.
A variante exposta linhas atrás entre texto e dramaturgia sugere um primeiro indício de estranhamento. Abreu assina o que plasma de si mesmo na lida com os escritos do poeta ou os coteja em citações transversais (Maiakóvski, Haroldo de Campos, Beckett, Mishima, Pina Bausch, Chagal, Cristo, Bashô e Cruz e Sousa, entre outros – os três últimos biografados por Leminski). Já as duas atrizes do núcleo juntam-se a ele para dispor o verbo no palco, uma dramaturgia inscrita também no desenho espacial, nos objetos, no trançado do elenco com eles.
O tempo é indefinido. O lugar, sem portas, sem janelas. Quatro figuras mal esboçadas no início aos poucos dão liga ao fluxo e ao território percebidos pelo espectador. Nada é elementar. Há duas mulheres (Giovana e Nadja) e dois homens (Ranieri Gonzalez e Rodrigo Ferrarini). Eles atendem pelo nome dos atores. Encontram-se naqueles dias para ensaiar. Tocam e cantam na banda escalada para se apresentar no clube social em plena festa de jubileu da cidade. A apreensão precipita inseguranças individuais e coletivas para além dessas quatro paredes de cores desbotadas – sendo a quarta a da platéia, derrubada desde o primeiro segundo: o narrador/Ferrarini surge no corredor da sala e caminha em direção ao espaço cênico. Tem-se a medida do desaguar desse quarteto desde si.
A genealogia da peça acolhe breves excertos biográficos dos artistas envolvidos. Desenha-se em cena a curva entre a tela em branco dessas figuras, no início, e a evolução para outros pontos de fuga, as constituições do drama humano sem retoques: desejos, inseguranças, frustrações, felicidades, medos, desamores, prazeres, virtudes, amoralidades, e por aí vão. Distraída, a noite vence com fortes sentimentos tragicômicos. Emoções que nos acompanham após a sessão e dão o que falar e pensar sobre o cotidiano lá fora, a qualidade das relações interpessoais ou em comunidade.
O narrador conduz e é conduzido no passeio pela incongruência das coisas, das pessoas, dos acontecimentos lembrados, vividos ou projetados. Acompanhamos uma expedição pelo aqui com apoio do mapa-múndi pênsil na parede de fundo. Uma parede inteiriça, como as demais, do pé ao teto. Uma parede móvel com uma portinhola quase clandestina. Essa parede é móvel e molda o campo de visão em vários momentos. Não demora, o impacto monumental da cenografia de Fernando Marés logo se revela um mecanismo funcional e afins com a despojamento da proposta coadunada ao desenho de não-luz de Naira. O espetáculo descarta o efeito espetacular.
Leminski escreveu: “A interrogação é o próprio fundamento do diálogo, o reconhecimento da diferença entre o eu, que eu sou, e o eu que o outro é, separados e próximos pela prática da linguagem, hiato e ponte”
Foto: Elenize DezgeniskiHá cadeiras de madeira, uma mesa, um ventilador, um microfone, instrumentos musicais (bumbo, trompete, guitarra, pratos metálicos e voz), enfim, um essencialismo dissimulado para uma viagem tão complexa como envolvente no seu reparte de quatro histórias justapostas. Daí o bordão do narrador preocupado em divagar pelas ideias sem perder o chão de estrelas: "Alguém escapou?", pontua, com seu jeito didático que seduz o público por reflexões sagazes.
A arte da música é capítulo à parte, está na razão de ser da banda e nos lembra com quantos descompassos é feita a presumida harmonia. Sampleia a diversidade sonora que ao cabo é ainda a da língua, a da diversidade sexual, a da pluralidade ideológica e a de todas as variações para o tema que não quer calar: como viver junto? Essa dimensão é capturada pela versatilidade dos atores; pela contracenação na boca de cena com o músico Gustavo Proença (sopros, teclados e percussão); pela trilha composta originalmente por André Abujamra, que flerta com o acaso e soa mais incidental que programado, tudo a ver com o ritmo da encenação; e ainda pela direção vocal do texto por Babaya, a preparadora que equaliza a partitura de cada criador em busca de outros pulsares.
Um dos méritos de Vida é conceber essa cartografia cênica, poética e musical sem abrir mão da capacidade de afetar seu interlocutor, de emocionar com suas metáforas em pencas. É um trabalho de apurada base científica formal e linguística, à altura da sofisticação intelectual de Paulo Leminski. E, como ele, não enverga a armadura do saber ensimesmado. Preza o poder de comunicar-se e persegue a dimensão popular da palavra sem barateá-la.
Em abril, no último fim de semana da temporada de estreia, no Teatro José Maria Santos, a Companhia Brasileira de Teatro lotou as sessões atraindo um público que, em sua maioria, encontrava-a pela primeira vez com os artistas desse grupo que já conta uma década. Boa parte desses espectadores não conheceu as criações anteriores com textos de Julio Cortázar, Philippe Minyana, Jean-Luc Lagarce, etc. A gente de Curitiba não fugiu da raia leminskiana e viu-se um pouco representada ali, bem como a cidade que transparece humana em seus humores. Como numa das passagens a respeito de uma cidade onde "as pessoas fazem cara de nada", nas ruas ou nos elevadores, "como se a cidade estivesse vazia".
Como se.
Vida é uma criação ousada, inventiva. Joga limpo, ligeiro, um instalar de dedos. Entre as cenas memoráveis, uma das mais difíceis - para quem faz e para quem vê – é quando mergulhamos no breu por cerca de dez minutos. Tudo permanece como está, inclusive o ir e vir no tablado, os diálogos sobre tentar acender um fósforo para minimizar o baque no clima de uma festa de aniversário. Sob tensão dos dois lados, no palco e fora dele, a teatralidade é sustentada, mais do que nunca, pela instância da escuta. A escuta tão cara nos dias de hoje e aliada fundamental da palavra. Eis a revolucionária imaginação no poder, faceira e flagrante feito um poema de Leminski.
(12 de maio de 2010)
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Uma tentativa de diálogo
Questão de Crítica - Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais
http://www.questaodecritica.com.br/
Autor: Luciana Eastwood Romagnoli
A Companhia Brasileira de Teatro saiu do processo de dois anos dedicados à literatura de Paulo Leminski tendo gestado uma obra autônoma: Vida. Os temas do poeta paranaense sobrevivem no espetáculo que estreou no Festival de Curitiba na medida em que vão diretamente de encontro aos interesses do grupo, muito identificado à dramaturgia francesa de um teatro em que a palavra germina em contextos frágeis de conversação.
Entre os escritos do poeta brasileiro, foram as sutilezas no trato com a linguagem e um universo impregnado por uma identidade curitibana ainda pouco problematizada artisticamente, os aspectos que mais contaminaram a companhia dirigida por Márcio Abreu. Coincidindo com a mudança do grupo do Rio de Janeiro para uma sede no centro histórico de Curitiba, a presença na cidade emergiu como um dos fios da textura dramatúrgica; outro são as estratégias que permitem o estabelecimento de um diálogo entre dois indivíduos. Juntam-se em uma observação crítica da existência nesse microcosmo, ao mesmo tempo em que Vida tangencia uma visão mais ampla, ainda que inevitavelmente vaga, do que significa estar no mundo.
O palco se apresenta, então, como lugar de encontros: sobretudo, de uma tentativa de diálogo. Mesmo que nem sempre a conexão entre os indivíduos se estabeleça e, nesses casos, sirva ao menos como ambiente privilegiado da expressão do eu. A própria maneira como Nadja (Naira) entra em cena pode ser lida como uma observação sobre a vida: espontânea e aleatória, confronta seres que não necessariamente têm pressupostos comuns a compartilhar, mas, uma vez postos em convívio, precisam instaurar algum modo de comunicação.
A princípio, nada une os quatro personagens que se encontram tão-somente para ensaiar um número musical. Guardam dos seus intérpretes os nomes e características pessoais, enfraquecidos por isso enquanto personagens ficcionais, mas, em contrapartida, fortalecidos pela biografia dos corpos e das personalidades daqueles indivíduos únicos que os representam. Nadja, Ranieri (Gonzalez), Giovana (Soar) e Rodrigo (Ferrarini) são enclausurados na sala de ensaios, isolados do mundo para que sobre eles recaia a atenção capaz de distinguir as manifestações particulares de cada personalidade, suas transformações à mercê do tempo e do contato com o outro.
A relação com o ambiente está no centro da concepção do espetáculo. Insinua-se quando o público é rememorado do instante e do espaço presentes, tanto pelo discurso direto quanto pelo uso radical da ausência de iluminação. O cenário se configura como um salão em que a única porta existente está escamoteada e é preciso atirar-se contra a parede para rompê-la. Um espaço cênico que (literalmente) se amplia e reduz, como a visão de mundo de quem está dentro ou fora de um contexto: é a deixa para que observações ácidas sobre hábitos locais desvelem a identidade curitibana, que permanece pouco consciente do seu interior, mas se torna mais delineável a partir de um ponto de vista externo. Faz-se a crítica, paradoxalmente, elaborando um sentimento de pertencimento.
Em oposição a esse microcosmo, também a dimensão da vida como fato cósmico é posta em questão. Frente à impossibilidade de se apreender e dizer a grandeza essencial, porém, a dramaturgia deixa que as trivialidades do cotidiano se desenrolem, para que de seus vãos escape algum entusiasmo, forjando momentos breves de elevação.
Nesse sentido, a fala de Ranieri, mais de uma vez dispersada, se impõe sintomática: “Eu estava pensando nos quinze minutos da minha vida que fizeram diferença no resto da minha vida.” Seus quinze minutos cruciais, quando chegam, constituem o auge emocional e energético do espetáculo. Ao microfone, transformado, Ranieri extravasa sua voz potente como pura energia sonora, em vez de veículo de um discurso: comunica uma vibração emocional e uma sensação mais grave de estar no mundo ao abolir as palavras. O momento finito de elevação vem para sugerir que a vida é feita de emoções e da falta delas. Outro pico, mais baixo, se dá no monólogo catártico de Giovana, quando o temperamento controlador cede à necessidade de conforto, num rompante de comoção.
Alimentada por lascas biográficas, a montagem toma o rumo de um desejo de realidade sem tentar forjar uma ilusão mimética. Vai por vezes em direção a um registro coloquial, sendo o máximo dessa aproximação a cena em que Giovana apresenta diretamente ao público as tatuagens de Ranieri. Nesse momento, a encenação abre-se para o naturalismo, confundindo limites entre personagens e atuadores, dentro das possibilidades restritas do trato documental numa situação roteirizada e repetida de palco. São, afinal, mais do que atores ou personagens, sujeitos que se expressam no mundo.
Pela fala esses indivíduos se constituem, a fala é ação: cria as zonas de interação onde brotam identificações e rancores. A palavra os consola da inação, como já o fizera Tchékhov, uma vez que a imobilidade supera os acontecimentos factuais (e os poucos infiltrados na dramaturgia são sempre interrompidos). Na prática, porém, a linguagem se organiza de modo irregular, por retalhos de diálogos e réplicas em desajuste que obedecem aos impulsos de expressão, revelando verdades íntimas, desejos, obsessões e falhas apenas timidamente.
Márcio Abreu não constrói propriamente uma história, mas uma composição, à qual a linguagem cede suas estruturas. O ritmo, atributo da prosódia, é chave para o funcionamento dessa engrenagem. A qualidade de sua direção está exatamente na sintonia fina que realiza, orquestrando os tempos e as nuances de silêncio e som, tensão e distensão, numa descontinuidade calculada. Como dramaturgo, reside no enredamento intrincado de temas sem que aparentemente nada suceda na superfície além da própria dinâmica conversacional. De um emaranhado de trivialidades, saltam frases memoráveis insinuando que têm mais a significar do que denotam, num mecanismo de embreagem pelo qual se pode alcançar outro nível de compreensão.
Ao jogar com a capacidade humana de dar significado ao que ouve e vê, a companhia reencontra o sentido cósmico que havia na obra de Leminski: a consciência do homem como único ser que lança seu olhar ao alto e ao incognoscível, tentando decifrar-lhe os sentidos. Aquele mesmo ser cuja expressão seminal é a da interrogação, da qual partirá para compreender seu estar no mundo e para percorrer a distância até o outro, seu desconhecido e semelhante, ainda que seja iniciando um diálogo banal.
http://www.questaodecritica.com.br/
Autor: Luciana Eastwood Romagnoli
A Companhia Brasileira de Teatro saiu do processo de dois anos dedicados à literatura de Paulo Leminski tendo gestado uma obra autônoma: Vida. Os temas do poeta paranaense sobrevivem no espetáculo que estreou no Festival de Curitiba na medida em que vão diretamente de encontro aos interesses do grupo, muito identificado à dramaturgia francesa de um teatro em que a palavra germina em contextos frágeis de conversação.
Entre os escritos do poeta brasileiro, foram as sutilezas no trato com a linguagem e um universo impregnado por uma identidade curitibana ainda pouco problematizada artisticamente, os aspectos que mais contaminaram a companhia dirigida por Márcio Abreu. Coincidindo com a mudança do grupo do Rio de Janeiro para uma sede no centro histórico de Curitiba, a presença na cidade emergiu como um dos fios da textura dramatúrgica; outro são as estratégias que permitem o estabelecimento de um diálogo entre dois indivíduos. Juntam-se em uma observação crítica da existência nesse microcosmo, ao mesmo tempo em que Vida tangencia uma visão mais ampla, ainda que inevitavelmente vaga, do que significa estar no mundo.
O palco se apresenta, então, como lugar de encontros: sobretudo, de uma tentativa de diálogo. Mesmo que nem sempre a conexão entre os indivíduos se estabeleça e, nesses casos, sirva ao menos como ambiente privilegiado da expressão do eu. A própria maneira como Nadja (Naira) entra em cena pode ser lida como uma observação sobre a vida: espontânea e aleatória, confronta seres que não necessariamente têm pressupostos comuns a compartilhar, mas, uma vez postos em convívio, precisam instaurar algum modo de comunicação.
A princípio, nada une os quatro personagens que se encontram tão-somente para ensaiar um número musical. Guardam dos seus intérpretes os nomes e características pessoais, enfraquecidos por isso enquanto personagens ficcionais, mas, em contrapartida, fortalecidos pela biografia dos corpos e das personalidades daqueles indivíduos únicos que os representam. Nadja, Ranieri (Gonzalez), Giovana (Soar) e Rodrigo (Ferrarini) são enclausurados na sala de ensaios, isolados do mundo para que sobre eles recaia a atenção capaz de distinguir as manifestações particulares de cada personalidade, suas transformações à mercê do tempo e do contato com o outro.
A relação com o ambiente está no centro da concepção do espetáculo. Insinua-se quando o público é rememorado do instante e do espaço presentes, tanto pelo discurso direto quanto pelo uso radical da ausência de iluminação. O cenário se configura como um salão em que a única porta existente está escamoteada e é preciso atirar-se contra a parede para rompê-la. Um espaço cênico que (literalmente) se amplia e reduz, como a visão de mundo de quem está dentro ou fora de um contexto: é a deixa para que observações ácidas sobre hábitos locais desvelem a identidade curitibana, que permanece pouco consciente do seu interior, mas se torna mais delineável a partir de um ponto de vista externo. Faz-se a crítica, paradoxalmente, elaborando um sentimento de pertencimento.
Em oposição a esse microcosmo, também a dimensão da vida como fato cósmico é posta em questão. Frente à impossibilidade de se apreender e dizer a grandeza essencial, porém, a dramaturgia deixa que as trivialidades do cotidiano se desenrolem, para que de seus vãos escape algum entusiasmo, forjando momentos breves de elevação.
Nesse sentido, a fala de Ranieri, mais de uma vez dispersada, se impõe sintomática: “Eu estava pensando nos quinze minutos da minha vida que fizeram diferença no resto da minha vida.” Seus quinze minutos cruciais, quando chegam, constituem o auge emocional e energético do espetáculo. Ao microfone, transformado, Ranieri extravasa sua voz potente como pura energia sonora, em vez de veículo de um discurso: comunica uma vibração emocional e uma sensação mais grave de estar no mundo ao abolir as palavras. O momento finito de elevação vem para sugerir que a vida é feita de emoções e da falta delas. Outro pico, mais baixo, se dá no monólogo catártico de Giovana, quando o temperamento controlador cede à necessidade de conforto, num rompante de comoção.
Alimentada por lascas biográficas, a montagem toma o rumo de um desejo de realidade sem tentar forjar uma ilusão mimética. Vai por vezes em direção a um registro coloquial, sendo o máximo dessa aproximação a cena em que Giovana apresenta diretamente ao público as tatuagens de Ranieri. Nesse momento, a encenação abre-se para o naturalismo, confundindo limites entre personagens e atuadores, dentro das possibilidades restritas do trato documental numa situação roteirizada e repetida de palco. São, afinal, mais do que atores ou personagens, sujeitos que se expressam no mundo.
Pela fala esses indivíduos se constituem, a fala é ação: cria as zonas de interação onde brotam identificações e rancores. A palavra os consola da inação, como já o fizera Tchékhov, uma vez que a imobilidade supera os acontecimentos factuais (e os poucos infiltrados na dramaturgia são sempre interrompidos). Na prática, porém, a linguagem se organiza de modo irregular, por retalhos de diálogos e réplicas em desajuste que obedecem aos impulsos de expressão, revelando verdades íntimas, desejos, obsessões e falhas apenas timidamente.
Márcio Abreu não constrói propriamente uma história, mas uma composição, à qual a linguagem cede suas estruturas. O ritmo, atributo da prosódia, é chave para o funcionamento dessa engrenagem. A qualidade de sua direção está exatamente na sintonia fina que realiza, orquestrando os tempos e as nuances de silêncio e som, tensão e distensão, numa descontinuidade calculada. Como dramaturgo, reside no enredamento intrincado de temas sem que aparentemente nada suceda na superfície além da própria dinâmica conversacional. De um emaranhado de trivialidades, saltam frases memoráveis insinuando que têm mais a significar do que denotam, num mecanismo de embreagem pelo qual se pode alcançar outro nível de compreensão.
Ao jogar com a capacidade humana de dar significado ao que ouve e vê, a companhia reencontra o sentido cósmico que havia na obra de Leminski: a consciência do homem como único ser que lança seu olhar ao alto e ao incognoscível, tentando decifrar-lhe os sentidos. Aquele mesmo ser cuja expressão seminal é a da interrogação, da qual partirá para compreender seu estar no mundo e para percorrer a distância até o outro, seu desconhecido e semelhante, ainda que seja iniciando um diálogo banal.
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